A (in)visibilidade das ações policiais ostensivas
Entre a distopia de Orwell e a realidade contemporânea
Jorge Lamberto Romeiro de Oliveira [*]
A obra 1984, de George Orwell, é um clássico da literatura universal que aborda, entre outros temas, a vigilância constante sobre os indivíduos. Na ficção, o Estado, representado por um partido político e seu líder, o Grande Irmão, monitora todos os aspectos da vida dos cidadãos por meio de dispositivos chamados teletelas, que transmitem e captam imagens e sons. Esses aparelhos estão presentes em todos os lugares, desde locais públicos até o interior das casas, criando um ambiente de controle totalitário.
Na distopia orwelliana, o medo de ser visto condicionava o comportamento social. Apenas membros do Núcleo do Partido podiam desligar as teletelas: um imenso privilégio. O poder da (in)visibilidade parcial: a possibilidade de descumprir as regras gerais sem consequências.
Se, na distopia, o Estado realizava um controle totalitário dos aspectos da vida das pessoas de forma coercitiva e visível, em nosso mundo contemporâneo, a vigilância é difusa e adaptável, ganhando diversas formas, inclusive não visíveis, muitas vezes até com a participação voluntária dos indivíduos.
Quem possui um celular carrega consigo também uma câmera, que filma a todos, inclusive a si mesmo. Os smartphones superaram as teletelas, chegando até mesmo às camas das pessoas. O medo de ser vigiado foi substituído pela esperança de ser visto nas redes sociais. Como afirma Lyon, “a vigilância é uma dimensão central da modernidade” [1]. Nesse contexto, o ponto focal do texto é a (in)visibilidade das ações policiais ostensivas em uma era em que todos somos vigiados.
O uso de câmeras corporais em policiais não é uma novidade. No Reino Unido, o recurso é empregado desde 2010. No Brasil, a Polícia Militar de Santa Catarina foi pioneira, lançando um programa de câmeras individuais em 2019. Em São Paulo, o governo estadual implementou o programa Olho Vivo em 2020, instalando câmeras em uniformes da polícia militar da capital. À época, conforme nota da Secretaria da Segurança Pública, tinha-se a percepção que “[a]s gravações preservam a atuação dos policiais e os direitos individuais dos cidadãos, além de fortalecer a produção de provas judiciais” [2].
Em 2021, ao examinar a validade das provas em uma condenação por tráfico de drogas no Estado de São Paulo, envolvendo a apreensão de 109 gramas de maconha mediante ingresso forçado em domicílio, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do HC n. 598.051/SP (DJe 15/3/2021) decidiu anular a sentença condenatória. A defesa impugnava a versão policial de que o acesso à residência teria sido franqueado, e não houve gravação audiovisual.
Nesse mesmo julgado, o Colegiado, ao enfrentar o problema do direito probatório nesses casos, determinou que, além da documentação escrita da diligência policial (relatório circunstanciado), fosse a ação totalmente registrada em vídeo e áudio. Para tanto, estabeleceu o prazo de um ano para que as polícias fossem aparelhadas, com o devido treinamento e demais providências necessárias para a adaptação às diretrizes da decisão.
Se, por um lado, como lembra Coutinho, o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5°, inciso XXXV da Constituição de 1988):
impede o Judiciário de recusar a análise de qualquer política pública – ou de qualquer ato administrativo por ela editado – que lese ou ameace lesar direitos[3]; por outro, “medidas como essas dependem diretamente da arrecadação e alocação de volumes de recursos significativos e de decisões alocativas baseadas numa visão alargada do universo das políticas públicas, que o Judiciário não possui.[4]
Além disso, o ciclo natural das políticas públicas, descrito por Leonardo Secchi em sete fases[5] (identificação do problema, formação da agenda, formulação de alternativas, tomada de decisão, implementação, avaliação e extinção), deve ser considerado.
No leading case do STJ (HC n. 598.051/SP), acima abordado, a despeito da existência de um programa de política pública existente no Estado de São Paulo, à época, a intervenção do judiciário não o considerou. E mais: realizou a tomada de decisão para todos os Estados da Federação.
O Ministro Alexandre de Moraes, por sua vez, em decisão monocrática proferida em 2/12/2021, nos autos do Recurso Extraordinário n. 1.342.077/SP, anulou parcialmente o acórdão da Sexta Turma, apenas no ponto em que esta determinou a necessidade de documentação e registro audiovisual das diligências policiais, determinando a implementação de medidas aos órgãos de segurança pública de todas as unidades da federação. Isto é, afastou a determinação no que tocava a política de segurança pública.
De toda forma, houve uma profusão de processos discutindo a validade do ingresso forçado em domicílio em prisões em flagrante por tráfico de drogas, sem o registro audiovisual. A discussão sobre o tema também ganhou relevância na agenda política e nos meios de comunicação.
No campo político, com a expansão do debate sobre o emprego das bodycams, o Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, recomendou o uso de câmeras corporais ao editar a Portaria n. 648/2024, em 28 de maio de 2024. Houve reações negativas, como a descontinuação do programa em Santa Catarina, a declaração peremptória do governador de Goiás de que não adotará câmeras corporais e, no caso de São Paulo, uma das maiores cidades do mundo em população e influência econômica, na qual concentrarei a análise descritiva da realidade.
Com a mudança do governador do estado após as eleições de 2022, o Programa Olho Vivo foi substituído pelo Programa Muralha Paulista, mesmo diante dos resultados positivos alcançados pelo primeiro.
De acordo com pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com a UNICEF, entre 2021 e 2022, a implementação dessa política, associada ao armazenamento das imagens, teve como resultado a redução de “76,2% da letalidade nos batalhões em que as câmeras passaram a ser utilizadas[6]”.
Em julho de 2023, sob o novo programa de segurança pública, a morte de um soldado em uma incursão na Baixada Santista levou à deflagração da Operação Escudo, considerada a mais letal em São Paulo desde o Massacre do Carandiru[7]. Durante a operação, a Defensoria Pública estadual ingressou com uma ação civil pública para garantir o uso de câmeras corporais pelos policiais. Diante da judicialização, a Secretaria de Segurança Pública encerrou a operação.
Logo após, foi iniciada a Operação Verão, que, segundo a Defensoria Pública (Suspensão Liminar 1696/SP, STF), assemelhava-se à Escudo em três aspectos: i) altos índices de letalidade policial; ii) atuação na Baixada Santista; e iii) intensificação após mortes de policiais. Juntas, as operações deixaram mais de cem mortos entre julho de 2023 e abril de 2024.[8]
Os eventos dessas operações foram amplamente noticiados pela imprensa nacional e internacional. O tabloide britânico The Sun, por exemplo, criticou severamente a Polícia Militar de São Paulo, descrevendo-a como a "força policial mais perigosa do mundo"[9]. “Mães encontram seus filhos mortos a tiros nas ruas por policiais e suspeitos são atirados de pontes em vez de serem presos.”, diz a matéria, em tradução livre.[10]
O governador do Estado de São Paulo, contrariando posições políticas iniciais, reconheceu a necessidade de câmeras corporais, mas introduziu um novo elemento ao debate público ao optar por um método de acionamento não automático, dependendo da ação do policial para ligar ou desligar o dispositivo. Isso não elimina a indesejada (in)visibilidade das ações policiais ostensivas.
No Brasil, após o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza, o efeito das câmeras corporais, no contexto das Unidades de Polícia Pacificadora na Rocinha, Rio de Janeiro, foi objeto de estudo randomizado, com evidências de conformidade imperfeita, em artigo publicado por Magaloni, Melo e Robles[11].
Com efeito, o artigo aponta que o uso das câmeras se mostrou deficiente: embora os policiais portassem o dispositivo, houve o acionamento em 18.5% dos casos, com efeito decrescente ao longo do tempo.[12]
No país onde as polícias foram responsáveis por 14% de todos os homicídios nacionais[13], segundo dados do Núcleo de Estudos da Violência da USP, é essencial avançar em direção a um modelo de segurança pública que priorize a transparência e a accountability. A (in)visibilidade das ações policiais ostensivas evidencia, de forma quase distópica, a possibilidade de alguns desviarem das regras. Essa situação é incompatível com qualquer programa de segurança pública em um Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Zygmunt; LYON, David. Segurança e medo na cidade. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
BAUMAN, Zygmunt; LYON, David. Vigilância Líquida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BELLI, Benoni. Tolerância Zero e Democracia no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2004.
BRASIL. IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, 2020. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/6403. Acesso em: 30 maio 2021.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Câmeras Corporais: uma revisão bibliográfica e documental. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-seguranca/seguranca-publica/cameras-corporais/diagnostico-cameras-corporais.pdf. Acesso em: 2 out. 2024.
COUTINHO, Diogo R. O Direito nas Políticas Públicas. São Paulo: Editora Saraiva, 2015.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; PIRES, Thula. Supremo Tribunal Federal e a naturalização da barbárie. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 1211-1237, 2020a.
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos impostos. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2019.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SECCHI, Leonardo. Políticas Públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. 2. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2013.
[*] Jorge Lamberto Romeiro de Oliveira, Analista Judiciário, Área Judiciária (STJ), Mestrando em Direito, Regulação e Políticas Públicas (UnB), Especialista em Direito Penal e Processual Penal (IDP).
[1] BAUMAN, Zygmunt; LYON, David; tradução Carlos Alberto Medeiros. Vigilância Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, pág. 11.
[2] HC n. 598.051/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 2/3/2021, DJe de 15/3/2021.
[3] Coutinho, Diogo R.. O Direito nas Políticas Públicas. Pág. 15.
[4] ibidem
[5] Secchi, Leonardo. Políticas Públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. 2ª Ed. São Paulo: Cengage Learning, 2013. Pág. 43.
[6] Disponível em: https://fontesegura.forumseguranca.org.br/a-discussao-sobre-o-uso-da-forca-por-parte-das-policias-permanece-peca-central-do-debate-em-torno-da-seguranca-publica-no-brasil//. Acesso em 20.2.2025.
[7] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/08/operacao-na-baixada-santista-e-a-mais-violenta-da-pm-paulista-desde-massacre-do-carandiru.shtml Acesso em 20.2.2025.
[8] Disponível em: https://www.metropoles.com/sao-paulo/oficiais-e-cabo-da-pm-sao-reus-por-assassinatos-durante-operacao-verao. Acesso em 15.2.2025.
[9] Disponível em: https://jovempan.com.br/noticias/brasil/the-sun-critica-pm-de-sp-e-diz-que-e-a-forca-policial-mais-perigosa-do-mundo.html.Acesso em 8.3.2025.
[10] Disponível em: https://www.metropoles.com/sao-paulo/ruas-de-sangue-pm-de-sp-e-a-mais-perigosa-do-mundo-diz-jornal-ingles
.Acesso em 8.3.2025.
[11] Warriors and Vigilantes as Police Officers: Evidence from a field experiment with body-cameras in Rio de Janeiro. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/Downloads/ssrn-4005710.pdf. Acesso em 8.3.2025
[12] Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-seguranca/seguranca-publica/cameras-corporais/diagnostico-cameras-corporais.pdf. Acesso em 8.3.2025.
[13] Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2024/03/12/mais-policias-nas-ruas-mais-homicidios.ghtml. Acesso em 8.3.2025.
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