Bruno Giordano Paiva Lima* e Cristiane Lopes Gonçalves**

O Supremo Tribunal Federal foi chamado a se pronunciar acerca da legitimidade da Defensoria Pública [1] para a tutela de direitos coletivos quando do julgamento do Tema 607 da sistemática da repercussão geral e da ADI 3.943 [2]. A Corte assentou, em essência, que a instituição tem legitimidade para propositura de ação civil pública com o objetivo de promover a defesa de direitos difusos ou coletivos de que sejam titulares, em tese, pessoas necessitadas. 

Não obstante, apesar dos referidos julgamentos, a questão não está definitivamente resolvida, isto porque novos feitos chegam ao Supremo Tribunal Federal, cuja matéria controvertida é a legitimidade da Defensoria no caso concreto à luz dos referidos precedentes. 

Nesse contexto, após pesquisa no banco de dados do Supremo Tribunal Federal, com as expressões "Tema 607" e "ADI 3943", foram encontrados 84 processos [3]. Estes processos foram analisados e tabulados um a um, a fim de se verificar em quais casos o STF confirmou a legitimidade ou não da Defensoria para a tutela de determinado interesse ou direito, bem como quais seriam esses direitos. Ademais, foi possível aferir quais defensorias tiveram uma maior participação nas controvérsias relativas à legitimidade.

Com o uso da expressão "tema 607" foram encontrados 32 processos, dos quais 17 o Supremo Tribunal Federal determinou a baixa à origem para adoção da sistemática da repercussão geral. Como o STF, tão somente, determinou a baixa do feito, estes 17 processos não serão analisados, uma vez que não contribuem para a finalidade do presente trabalho. 

Sobram, então, 15 feitos, divididos da seguinte maneira: a) 5 representam casos em que o Supremo deu provimento ao recurso/reclamação para reconhecer a legitimidade da Defensoria para a tutela de determinado direito; b) 7 representam casos em que o STF não deu provimento ao recurso, mas afirmou que o acórdão recorrido estaria de acordo com o tema 607 da RG, ou seja, pode ser entendido como um caso em que o STF reconheceu a legitimidade da Defensoria para a tutela de determinado direito; c) 1 caso representou uma situação de reclamação incabível; d) 1 caso afirmou que o STF não poderia analisar a questão da legitimidade da Defensoria, porque o Tribunal de origem negou seguimento ao RE, em razão de o acórdão recorrido estar de acordo com tema 607; e e) 1 caso afirmou que, para dissentir do Tribunal de origem quanto à legitimidade da Defensoria, seria necessário analisar fatos e provas. 

Para fins do presente trabalho, são interessantes os processos de provimento pelo Supremo Tribunal Federal e aqueles casos em que, apesar de não haver provimento, foi reconhecido que o acórdão recorrido está alinhado ao entendimento da Corte.

Desse modo, a partir da análise dos 12 julgados que restam dos 15 citados, é possível apontar as seguintes conclusões, no tocante a qual Defensoria Pública figurava como parte: 

  • 5 casos representaram a atuação da Defensoria Pública da União, instituição com maior participação em controvérsias envolvendo a legitimidade nos moldes do Tema 607; 
  •  2 casos contaram com a participação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a mais ativa dentre as instituições a nível estadual; e 
  • Os demais casos contam com a participação das Defensorias do Estado da Bahia, de Tocantins, de Minas Gerais, do Mato Grosso e de Alagoas. 

Nota-se que existe uma sub-representação a nível estadual, uma vez que não foram localizadas participações das demais defensorias dos estados. Com os dados colhidos no presente trabalho, não é possível apontar razões para isso, o que pode ser um problema de pesquisa interessante para outro estudo.

Com o uso da expressão "ADI 3943" foram encontrados 52 processos:

  •  21 processos não possuem relação com a questão de fundo discutida na ADI. Os resultados apareceram na pesquisa por diferentes razões. Alguns em razão de fundamentação apresentada pela parte, que menciona a ADI; outros em virtude de o Tribunal de origem ter mencionado o julgado em sua ementa; e, outros, como reforço de fundamentação para apreciar alguma outra questão, como, por exemplo, o Tema 1.002 da sistemática da repercussão geral [4];
  • 13 processos foram obtidos com o uso da expressão "ADI 3943", mas eles já foram catalogados quando da busca pelo "Tema 607" [5]. Isto se deve ao fato de os relatores, nesses casos, terem usado como fundamentação tanto a tese de repercussão geral, quanto as razões de decidir do processo de controle concentrado de constitucionalidade; 
  • Em 8 processos, o Supremo Tribunal Federal negou seguimento ao recurso, sob o fundamento de que o acórdão recorrido estaria alinhado ao entendimento da Corte sobre a matéria. Nesses casos, o precedente mencionado pelas decisões é justamente a ADI 3.943. Conforme dito anteriormente, em que pese a negativa de seguimento, estes precedentes, ao mencionar a ADI, de certo modo, reconhecem a legitimidade da Defensoria Pública para a tutela dos direitos controvertidos em cada caso;
  •  6 processos não apresentaram conteúdo decisório acerca da legitimidade da Defensoria, mas houve menção ao precedente;
  • 2 processos consistiram em reclamações cujo fundamento é a eventual violação à Súmula Vinculante nº 10, mas houve menção ao precedente;
  • 1 processo representa caso em que o Supremo Tribunal Federal deu provimento ao recurso da Defensoria para reconhecer a sua legitimidade;
  • 1 caso consiste em precedente em que a Corte afirmou que o acórdão recorrido estaria alinhado ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, mas houve negativa à legitimidade da Defensoria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa realizada revelou uma gama diferente de direitos que chegaram ao Supremo Tribunal Federal. Foram detectadas demandas sobre direito à saúde, do consumidor, urbanístico e meio ambiente, dos candidatos de concurso público, de comunidade quilombola, da prestação de serviços públicos, execução penal e até retorno dos restos mortais de brasileiro falecido no exterior.

A Defensoria Pública da União foi a instituição com mais participação na Corte acerca do decidido no Tema 607 da RG (5 vezes), seguida da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (2 vezes). Os demais casos contam com a participação das Defensorias do Estado da Bahia, de Tocantins, de Minas Gerais, do Mato Grosso e de Alagoas. À exceção da Defensoria Pública do Estado de Alagoas, não foram encontradas demandas envolvendo as Defensorias de Estados com maiores taxas de pobreza do Brasil (Maranhão, Pará, Piauí e Ceará). Devido ao escopo do presente trabalho, não é possível afirmar com certeza qual a razão disso, mas hipóteses podem ser levantadas, como uma atuação mais resolutiva por parte das Defensorias Públicas dos referidos Estados, ou, ainda, um judiciário local mais flexível quanto ao exame da legitimidade da instituição. São hipóteses que podem fomentar outros estudos sobre o tema.

Quanto à ADI 3.943, mais uma vez a DPU foi a instituição que mais discutiu a questão no Supremo Tribunal Federal (4 vezes), seguida da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (3 vezes) e da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (2 vezes). Os demais casos envolveram as Defensorias Públicas do Estado de Mato Grosso (1 caso) e do Mato Grosso do Sul (1 caso). Destaca-se a grande participação da Defensoria Pública gaúcha nas questões envolvendo a ADI, diferentemente do Tema 607, em que não foram detectadas contendas envolvendo a instituição. O mesmo vale para a Defensoria Pública carioca. Devido aos limites da presente pesquisa, não se pode afirmar com certeza as razões desse comportamento. Mas, certamente, são motivos para mais pesquisas envolvendo a matéria.

Em geral, destaca-se a participação da Defensoria Pública da União, a qual teve envolvimento em 9 feitos. Mais uma vez, devido à abrangência do presente estudo, não é possível a confirmação das razões desse fato, mas, hipóteses podem ser levantadas, como o bom aparelhamento da instituição na capital federal e sua proximidade com o Supremo, tanto física quanto em escopo de atuação.

Somente no RE 1.242.840 o STF se pronunciou acerca da ausência de legitimidade da Defensoria Pública. A Corte negou seguimento ao recurso da DPU para assentar que o Tribunal de origem decidiu a questão de forma alinhada ao Tema 607. No caso, a DPU havia ajuizado ação civil pública buscando o pagamento de gratificação de qualificação a servidores da carreira de Tecnologia Militar do Ministério da Defesa. O acórdão recorrido afirmou que não se estava diante de hipossuficientes ou de vulneráveis de qualquer tipo, o que afastaria a legitimidade da instituição. Portanto, trata-se de um caso que pode revelar um standard decisório acerca da ausência de legitimidade da Defensoria Pública em demandas que buscam o pagamento de gratificações a servidores públicos, os quais, via de regra, possuem Sindicatos e são organizados para a defesa de seus interesses.

Em ponto diametralmente oposto, está o ARE 1.297.300 AgR-segundo, onde o STF deu provimento ao recurso da DPU, para assentar a legitimidade da instituição para ajuizar demanda em que se buscava a responsabilização da União para a repatriação de restos mortais de brasileiros falecidos no exterior, quando presente a hipossuficiência dos familiares. 

É inegável a importância do tema para a atuação da Defensoria Pública, uma vez que, pelos dados levantados no presente estudo, encontramos julgados em que o Supremo Tribunal Federal chancelou a atuação da instituição, dando provimento aos recursos ou, ainda, reconhecendo a legitimidade da tutela de determinados direitos por parte das Defensorias Públicas. Ao mesmo tempo, foi encontrado julgado em que se afastou a legitimidade da instituição. 

Repara-se que o mapeamento dessas controvérsias são uma importante bússola para a atuação das Defensorias Públicas, uma vez que, diante de demanda similar, a instituição pode estar segura da legitimidade ou não de sua atuação no caso concreto. Não obstante, a presente pesquisa não almeja esgotar o tema, na medida em que foi analisado um corte específico da atuação junto ao Supremo Tribunal Federal. Ou seja, é possível que outros interesses e direitos tenham sido tutelados pelas Defensorias Públicas em outras instâncias e Tribunais. Além disso, não se analisou a atuação resolutiva da instituição.

A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado e possui importância ímpar na tutela de direitos e interesses dos hipossuficientes e vulneráveis de qualquer natureza. Como visto nesta pesquisa, a instituição ainda encontra diversas barreiras para o atingimento de suas finalidades precípuas, seja por parte do Judiciário ou de outras instituições, mas, ainda assim, foi verificado, também, a atuação distintiva dos seus membros para assegurar as prerrogativas da Defensoria, na medida em que, em muitos casos, levaram a questão até o Supremo Tribunal Federal para lutarem pela legitimidade da instituição na tutela de direitos e interesses relevantes. 

Percebe-se, por fim, que a atuação da Defensoria pública em prol de direitos difusos não se restringe aos necessitados reconhecidos como hipossuficientes economicamente, mas a uma população, em tese, de vulneráveis. Diante do aumento de decisões dos Tribunais brasileiros em prol do reconhecimento da atuação da Defensoria Pública na qualidade de custos vulnerabilis, é possível inferir que deve aumentar a frequência de casos em que se reconhece a legitimidade de atuação da Defensoria Pública na defesa de interesses difusos e coletivos, situação em que as decisões proferidas na ADI 3.943 e no Tema 607 ganharão ainda mais força para a sua aplicação.

[1] A Defensoria Pública tem legitimidade para a propositura de ação civil pública que vise a promover a tutela judicial de direitos difusos ou coletivos de que sejam titulares, em tese, pessoas necessitadas.

[2]  EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA AJUIZAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA (ART. 5º, INC. II, DA LEI N. 7.347/1985, ALTERADO PELO ART. 2º DA LEI N. 11.448/2007). TUTELA DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS (COLETIVOS STRITO SENSU E DIFUSOS) E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DEFENSORIA PÚBLICA: INSTITUIÇÃO ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL. ACESSO À JUSTIÇA. NECESSITADO: DEFINIÇÃO SEGUNDO PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS GARANTIDORES DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E DA MÁXIMA EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS: ART. 5º, INCS. XXXV, LXXIV, LXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. INEXISTÊNCIA DE NORMA DE EXCLUSIVIDAD DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAMENTO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELO RECONHECIMENTO DA LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.

[3]  Houve um corte temporal, qual seja, o julgamento da ação de controle concentrado (07.05.2015), o primeiro marco a tratar da tutela, pela Defensoria Pública, de direitos coletivos em sentido amplo. Os dados foram coletados até a data de 27.06.2024, período de finalização da coleta de informações no banco de pesquisa da Corte.

[4]  Tese: 1. É devido o pagamento de honorários sucumbenciais à Defensoria Pública, quando representa parte vencedora em demanda ajuizada contra qualquer ente público, inclusive aquele que integra; 2. O valor recebido a título de honorários sucumbenciais deve ser destinado, exclusivamente, ao aparelhamento das Defensorias Públicas, vedado o seu rateio entre os membros da instituição.

[5]  RE 1.099.936; RE 1.273.984; RE 1.424.082; RE 1.415.577; ARE 1.413.466; RE 1.390.764; ARE 1.366.832; RE 1.155.842; ARE 1.325.975; ARE 1.127.275; Rcl 22.614; RE 976.609; e Rcl 23.532.

*Analista Judiciário no Supremo Tribunal Federal, aluno do PMPD.

**Servidora Pública Federal, aluna do PMPD.