A novação operada no plano de recuperação judicial e as garantias reais do crédito segundo o STJ: um bom exemplo de estabilização da jurisprudência
Exemplos acerca da evolução e estabilização da jurisprudência dos tribunais superiores merecem ser avaliados e aplaudidos na busca da sedimentação da cultura do precedente no direito brasileiro.
Tiago Borges Fonseca
Discussão que, vez ou outra, se apresenta às turmas de direito privado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) diz respeito à extensão da novação operada com a aprovação pela assembleia geral de credores do plano de recuperação judicial.
A controvérsia, por si só, gera inúmeros desdobramentos, entre os quais é possível destacar a edição da Súmula n. 581 do STJ, originada a partir do julgamento do Tema repetitivo n. 885, em que foi fixada a seguinte tese: “A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005”.
A tese acima, embora bem delimitada, não exauriu a complexidade que rodeia a novação prevista na legislação falimentar, instituto que, segundo a própria jurisprudência do STJ, tem natureza sui generis [2], não devendo ser confundido com o instituto homônimo previsto no Código Civil brasileiro.
Essa visão sistêmica acerca da dificuldade de identificar a tese repetitiva e o nível de abrangência das possíveis variantes apresentadas no caso concreto levado à Corte reclama melhor compreensão do disposto no art. 105, III, da Constituição Federal, que estabelece o viés institucional [3] atribuído ao STJ, responsável pela uniformização da intepretação da norma infraconstitucional em todo o território nacional.
A problematização recai, portanto, sobre a identificação de novo paradigma institucional que não se limite ao respeito ao precedente qualificado – seja pela tese repetitiva, seja pelo enquadramento da relevância da matéria –, mas permita, de modo geral, a promoção de uma jurisprudência coerente e estabilizada do ponto de vista da unicidade [4] e da hierarquização do Poder Judiciário.
Ao analisar a evolução jurisprudencial do STJ acerca das garantias reais ou fidejussórias dadas às obrigações firmadas antes da aprovação do plano de recuperação judicial pela assembleia geral de credores, pode-se identificar um bom exemplo do modelo de atuação institucional proposto.
Inicialmente, a Segunda Seção do STJ foi provocada a manifestar-se a respeito da mencionada controvérsia no julgamento do REsp n. 1.797.924/MT [5], de relatoria originária da Ministra Nancy Andrighi. Contudo, com a ocorrência do trânsito em julgado do acórdão que anulou o plano de recuperação judicial – em que inserida a cláusula de supressão de garantias reais e fidejussórias, cuja validade e extensão eram discutidas no referido recurso especial –, foi acatada a questão de ordem levantada pelo Ministro Marco Aurélio Bellizze, resultando na prejudicialidade do recurso.
Até o ano de 2020, a Terceira Turma já havia consolidado o entendimento de que a novação prevista na lei falimentar deveria atingir, indistintamente, todas as obrigações de determinada classe de credores que aprovasse o plano e, por consequência, suas garantias, pois consideradas assessórias ao principal, em observância ao que dispõem os arts. 49, § 2º, e 50, § 1º, da Lei n. 11.101/2005. Esse entendimento foi referendado nos REsps n. 1.532.943/MT, 1.700.487/MT, 1.863.842/RS e 1.850.287/SP.
No mesmo período, a Quarta Turma do STJ decidia de forma diametralmente oposta, reconhecendo a limitação da novação das obrigações em recuperação judicial, ante a nulidade de cláusulas extintivas de garantias cambial, real ou fidejussória, por força do disposto no mesmo art. 49, §§ 1º e 2º, da Lei n. 11.101/2005. É o que se observa dos seguintes julgados: AREsps n. 1.525.917/RS, 1.176.871/MS e 457.117/SP e REsp n. 1.326.888/RS.
Diante da divergência instaurada, a controvérsia foi levada à Segunda Seção do STJ, que, no julgamento conjunto dos REsps n. 1.885.536/MT e 1.794.209/SP, ocorrido em 12/5/2021 e publicado em 29/6/2021, fixou duas teses principais a fim de uniformizar o entendimento a respeito da novação operada com a aprovação do plano de recuperação judicial e de sua extensão aos credores titulares de garantias reais, a saber: 1) a cláusula que estende a novação aos coobrigados é legítima e oponível apenas aos credores que aprovaram o plano de recuperação sem nenhuma ressalva, não sendo eficaz em relação aos credores ausentes da assembleia geral, aos que se abstiveram de votar ou aos que se posicionaram contra tal disposição; e 2) a anuência do titular da garantia real é indispensável na hipótese em que o plano de recuperação judicial prevê sua supressão ou substituição.
As referidas teses partem do pressuposto de que a mens legis constante do § 2º do art. 49 da Lei n. 11.101/2005 abarca tão somente as obrigações assumidas anteriormente à aprovação do plano de recuperação judicial e a seus desdobramentos, entre os quais os deságios, prazos e encargos. No entanto, com relação às garantias dessas obrigações, ressalvou-se que sua modificação ou supressão dependeria da expressa anuência do credor beneficiário.
Assim, ao condicionar a eficácia da novação operada em relação às garantias objeto de discussão no plano de recuperação judicial à anuência expressa do respectivo credor, a Segunda Seção do STJ autorizou a preservação do benefício em três hipóteses distintas: 1) quando o credor participante da assembleia geral votou contra a supressão/modificação das garantais; 2) quando o credor participante da assembleia geral se absteve de votar; e 3) quando o credor não participou da assembleia geral que aprovou o plano de recuperação com as referidas restrições.
No entender do mencionado órgão julgador, essa solução é a que melhor equaciona o binômio “preservação da empresa viável x preservação da atividade econômica”, na medida em que o instituto da novação falimentar não deve ser interpretado como uma presunção pura e simples que atingiria, de forma indistinta, todos os credores que fizessem parte da classe que aprovou por maioria o plano de recuperação.
O relator do acórdão, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, enumerou ainda as seguintes premissas: 1) a regra geral da LRF é a de que a novação atinge apenas as obrigações da sociedade em recuperação, com expressa ressalva das garantias concedidas aos credores; 2) a extensão da novação aos coobrigados depende de inequívoca manifestação do credor nesse sentido, pois a novação não se presume; 3) em relação às garantias reais, a lei de regência estabelece expressamente a necessidade de aprovação do credor na hipótese de alienação do objeto da garantia; 4) a supressão das garantias por votação da maioria enseja o tratamento desigual entre os credores; 5) declarada a falência, remanesce o interesse do credor com garantia real na manutenção do gravame sobre o bem; e 6) o legislador previu novas formas de financiar a empresa em crise, não havendo justificativa para a oneração excessiva dos credores com garantia.
Vale destacar que, em voto-vista, o Ministro Raul Araújo mencionou a necessidade de manutenção das garantias reais e fidejussórias intactas como meio de proteção do credor dissidente e do discordante, porquanto sua exclusão poderia resultar no colapso da atividade empresarial e, por consequência última, inviabilizar a realização do plano de recuperação
Ficaram vencidos os Ministros Marco Aurélio Bellizze e Paulo de Tarso Sanseverino. Ambos adotaram o fundamento de que obstar a novação em relação às garantias reais e fidejussórias ou de limitá-la às obrigações assumidas antes da aprovação do plano resultaria na mácula dos princípios majoritário e par conditio creditorum, visto que, observado o quorum legal de aprovação, todas as medidas postas em votação deveriam ser estendidas à classe de credores correspondente, de forma indistinta.
O Ministro Luis Felipe Salomão foi vencido em parte, por entender que “os créditos hipotecários, pignoratícios e anticréticos (objetos de direito real de garantia) sujeitam-se aos efeitos da recuperação judicial, isto significa que todos os elementos da obrigação podem ser alterados”.
Independentemente do acerto do entendimento firmado, importa destacar que, desde então, o acórdão da Segunda Seção é o parâmetro uniformizador das referidas teses, elevando o grau de aplicabilidade do direito e permitindo, em última análise, a estabilização da jurisprudência privada na Corte.
Exemplo dessa boa prática institucional é o julgamento do AgInt no REsp n. 2.003.513/GO [6], de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, em que a Quarta Turma reafirmou o entendimento consolidado pela Segunda Seção.
Em seu voto, o relator ressaltou “que a jurisprudência mencionada pelos agravantes foi superada, tendo ocorrido o overruling tanto sob o ponto de vista temporal quanto sob o critério hierárquico, na medida em que a Segunda Seção, ao avaliar situação semelhante em momento posterior, unificou o entendimento das turmas julgadoras, fixando nova tese jurídica a respeito do tema”.
Por votação unânime, foi negado provimento ao agravo interno, concluindo-se que, “não obstante o plano de recuperação judicial operar a novação das dívidas a ele submetidas, certo é que as garantias reais ou fidejussórias não podem ser suprimidas pela assembleia geral de credores em relação aos credores que não anuíram ao referido plano”.
Ao mencionar a superação do entendimento pretérito e confirmar a jurisprudência atual das duas turmas de direito privado, em respeito ao precedente, ainda que não qualificado, fixado pelo órgão hierarquicamente superior, a Quarta Turma do STJ demonstrou o grau de maturidade institucional assumido, pois, além de impulsionar a uniformização jurisprudencial acerca de tema extremamente controverso, evidenciou o caráter pedagógico da atuação do órgão colegiado ao sinalizar para os Tribunais inferiores a estabilidade alcançada acerca da controvérsia.
Espera-se que esse tipo de comportamento institucional ganhe força e seja replicado também nos tribunais de justiça e regionais federais, de modo a permitir, cada vez mais, a retirada de núcleos essenciais de decisões judiciais tomadas à luz de um caso concreto, a fim de se alcançar o precedente como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos.
[*] Servidor Público Federal do Superior Tribunal de Justiça. Analista Judiciário – Área Judiciária. Assessor de Ministro. Mestre em Direito, Regulação e Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: bfonseca@stj.jus.br.
[2] Sobre o tema, conferir os seguintes julgados: AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.867.278/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 12/9/2022, DJe de 14/9/2022; e AgInt no REsp n. 1.932.219/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 13/12/2021, DJe de 1º/2/2022.
[3] O viés institucional que se pretende identificar corresponde à perspectiva norte-americana que, na década de 1990, renovou seus estudos em matéria de instituições, por exemplo: GILLMAN, Howard; CLAYTON, Cornell. The Supreme Court in American Politics: New Institutionalist Perspectives. Lawrence, KA: Kansas University Press, 1999; e GRIFFIN, Stephen. American Constitutionalism: From Theory to Politics. Princeton: Princeton University Press, 1999. Essa perspectiva recebeu maior definição a partir da publicação do artigo Interpretation and Institutions (SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Chicago Public Law and Legal Theory Working Paper Series n. 28, 2002).
[4] Sobre a exigência de unidade do Poder Judiciário: MARCHIORI, Marcelo Ornellas. A integração promovida pelo Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal e pela Comissão Gestora de Precedentes do STJ e sua imprescindibilidade para o modelo brasileiro de precedentes – análise contextualizada com a Nota Técnica n. 5/2018. Disponível em: http://www.enajus.org.br/anais/assets/papers/2019/242.pdf. Acesso em: 19 mar. 2023.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.797.924/MT, Segunda Seção, relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para o acórdão Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe de 19/11/2020. Disponível em: <STJ - Consulta Processual>. Acesso em: 17 mar. 2023.
[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp n. 2.003.513/GO, Quarta Turma, relator Ministro João Otávio de Noronha, DJe de 9/3/2023. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=202201463761. Acesso em: 15 mar. 2023.
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