A prescrição da pretensão ressarcitória e punitiva no Tribunal de Contas da União e a judicialização da matéria no Supremo Tribunal Federal
Nilton Leal da Silva [1]
Sandra Miranda dos Santos [2]
O tema da prescrição das pretensões ressarcitórias e punitivas no Tribunal de Contas da União (TCU) e sua judicialização no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de mandado de segurança, constitui questão de grande relevância e complexidade no direito brasileiro.
A evolução dos posicionamentos do TCU reflete um processo de interpretação e adaptação às mudanças jurisprudenciais, especialmente no âmbito do STF.
As decisões do Supremo sobre a questão sempre foram desafiadas pela ausência de regulação por norma específica. Partindo de um entendimento majoritário de imprescritibilidade para o de que as pretensões de ressarcimento ao erário estão sujeitas a prazo prescricional, a jurisprudência do STF tem se modificado sobremaneira ao longo do tempo.
O juízo pela imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário começou a ser excepcionado no julgamento do RE 669.069 (Tema n. 666/RG)[1].
Interpretando o art. 37, § 5º, da Constituição federal, o Pleno do STF estabeleceu que a imprescritibilidade se aplica apenas às ações por danos decorrentes de ilícitos de improbidade administrativa ou penal, sendo a prescritibilidade regra geral.
Posteriormente, ao analisar o RE 852.475 (Tema n. 897/RG)[2], foi estabelecida a tese de que “são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”.
As controvérsias se adensaram no ano de 2020, após o julgamento, pelo STF, do Tema de Repercussão Geral n. 899[3], no qual fixado ser prescritível inclusive a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de corte de contas. Anteriormente, apenas posições minoritárias consideravam incidir prazo prescricional de cinco anos, por analogia com as normas aplicáveis à Administração Pública, como o Decreto n. 20.910/1932, Lei n. 4.417/1965 e Lei n. 8.429/1992 (MS 34.467[4]).
O julgamento do Tema 899[5] implicou desdobramentos. Remanesceram discussões sobre o cômputo do prazo prescricional na fase anterior ao ajuizamento da execução fiscal. Os questionamentos passaram a circundar o lapso temporal necessário para que o TCU conclua seus procedimentos, bem como a fixação de termo inicial e marcos interruptivos.
Ainda em 2020, ambas as Turmas do Supremo firmaram posicionamento de que o prazo prescricional das pretensões de ressarcimento e punitivas fundadas em decisões das cortes de contas é de cinco anos, com base na aplicação analógica da Lei n. 9.873/1999, excetuando-se os fatos que também constituam crimes. A partir de então, o foco das discussões se concentrou no termo inicial e nas causas de interrupção.
Diversas decisões enfatizaram que qualquer ato inequívoco que visasse à apuração do fato, nos termos do art. 2º, II, da Lei n. 9.873/1999, seria causa de interrupção da prescrição, sem limite quantitativo para ocorrência de tais interrupções (MS 36.800[6] e MS 36.111[7]).
No final de 2021, surgiu estabelecida a necessidade de o gestor ou interessado ter ciência de que atos praticados por ele foram considerados ilegais ou estavam sob apuração (MS 38.223[8], MS 34.256[9] e MS 36.907[10]).
Com pequenas variações, o Supremo afirmava que o prazo prescricional começa a contar a partir da data em que as contas deveriam ter sido apresentadas e, em caso de omissão, da data de apresentação das contas ao órgão competente ou daquela de concretização do dano, principalmente em razão da Instrução Normativa n. 71/2012/TCU.
Assim, o entendimento majoritário era pela aplicação das disposições da Lei n. 9.873/1999 quanto ao prazo prescricional e marcos interruptivos.
No entanto, no dia 11 de outubro de 2022, foi editada a Resolução n. 344/2022/TCU, que regulamentou, no âmbito do TCU, a prescrição do exercício das pretensões punitivas e de ressarcimento.
A partir da nova norma, após anos de instabilidade na jurisprudência do TCU, que oscilou entre a imprescritibilidade e a prescrição decenal do Código Civil (artigo 205), a Corte passou a ter uma orientação para que a prescrição fosse reconhecida em processos de forma uniforme.
Quantos aos prazos, o art. 2º da Resolução n. 344/22 dispõe que “prescrevem em cinco anos as pretensões punitivas e de ressarcimento, contados dos termos iniciais indicados no artigo 4°, conforme cada caso”[11]. Além da prescrição punitiva e ressarcitória quinquenal, foi estabelecida também a prescrição intercorrente trienal.
Todavia, várias críticas foram tecidas à resolução n. 344/2022.
O artigo 4°, III e IV, prevê, como termo inicial do prazo, a data da denúncia ou representação ou a data do conhecimento da irregularidade pelo TCU ou dos órgãos de controle.
Além disso, foram previstas inúmeras causas interruptivas do prazo prescricional.
Os citados dispositivos foram alvo de críticas, por ampliarem sobremaneira a incidência do prazo, esvaziando a efetividade do decidido pelo STF.
A resolução 344/22 foi seguida pela recente resolução 367/2024, que alterou alguns pontos da norma primeva, no intuito de aprimorá-la. Foram alteradas pontualmente algumas disposições da resolução original, sem, contudo, desnaturar o cerne do texto[12].
Em 2023, o STF proferiu seu primeiro julgamento contrário à resolução 344/22, no MS 37.596[13], na qual o Ministro. Gilmar Mendes, revisitando sua posição, estabeleceu que o prazo de prescrição para a devolução de valores e aplicação de punições é de cinco anos (Lei n. 9.873/1999), iniciando-se a contagem do prazo a partir da data de conhecimento da irregularidade, correspondente à entrada do processo de fiscalização no Tribunal de Contas ou no órgão encarregado do controle interno, mencionando a decisão do Tribunal Pleno na ADI 5.509[14].
Em seguida, no julgamento do MS 38.790[15], a Segunda Turma do Supremo pôs em evidência o princípio da unicidade da interrupção prescricional, conforme disposto no caput do art. 202 do Código Civil, vencido o Ministro André Mendonça (MS 39.523[16] e MS 39.529[17]), entendimento que prevalece até a data de elaboração deste artigo.
Diversamente, a Primeira Turma afirma ser o prazo prescricional de 5 (cinco) anos (Lei n. 9.873/1999), com a possibilidade de existir diversos marcos interruptivos (MS 39.556[18]). No ponto, apenas o Ministro Flávio Dino, vencido, faz a ressalva de que, “os atos de apuração do fato apenas causam a interrupção da prescrição na hipótese em que o interessado tem conhecimento de que a Administração deu início ou praticou algum ato tendente a apurar fatos a ele ligados, com a descrição da conduta individual objeto de investigação” (MS 39.657 MC[19]).
Nesse quadro, tem-se que a Segunda Turma, por maioria, adota o prazo de 5 (cinco) anos de prescrição da pretensão de ressarcimento e de aplicação de multa pelo Tribunal de Contas da União, contado a partir da entrada do processo de fiscalização no Tribunal de Contas ou no órgão que, por determinação legal, é encarregado do controle interno, fazendo incidir a possibilidade de interrupção uma única vez.
A Primeira Turma, por sua vez, tem entendimento firmado por maioria, no sentido de que o prazo prescricional e punitivo é de 5 (cinco) anos, o qual pode ser interrompido na forma da Lei n. 9.873/1999, ou seja, por qualquer ato tendente a apurar o ilícito.
Verifica-se, assim, um cenário de intenso conflito interpretativo e de significativa mudança e evolução jurisprudencial.
Certamente, há um desequilíbrio entre a necessidade de proteção do patrimônio público, buscado por meio das ações de ressarcimento, e a garantia da segurança jurídica para os administrados. Urge a necessidade de definição entre prazos prescricionais uniformes com termos iniciais e marcos interruptivos claros. Por ora, resta permanecer acompanhando a evolução legislativa e jurisprudencial sobre a matéria.
Referências
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Mandado de Segurança 34.467 AgR. Relator: Ministra Rosa Weber, 08 mar. 2021. Brasília, DF: STF, 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). Mandado de Segurança 36.907 AgR. Relatora: Ministra Cármen Lúcia, 29 nov. 2021. Brasília, DF: STF, 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 36.800. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, 12 mai. 2020. Brasília, DF: STF, 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 3.611. Relator: Ministro Gilmar Mendes, 19 maio 2020. Brasília, DF: STF, 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 36.223. Relator: Ministro Nunes Marques, 02 dez. 2021. Brasília, DF: STF, 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 34.256. Relator: Ministro Roberto Barroso, 07 jan. 2022. Brasília, DF: STF, 2022.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 37.596. Relator: Ministro Gilmar Mendes, 04 mai. 2023. Brasília, DF: STF, 2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 38.790. Relator: Ministro Gilmar Mendes, 02 mar. 2023. Brasília, DF: STF, 2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 39.523. Relator: Ministro Edson Fachin, 15 fev. 2024. Brasília, DF: STF, 2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 39.529. Relator: Ministro Edson Fachin, 16 fev. 2024. Brasília, DF: STF, 2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 39.556. Relator: Ministro Cristiano Zanin, 27 fev. 2024. Brasília, DF: STF, 2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 39.657. Relator: Ministro Flávio Dino, 27 fev. 2024. Brasília, DF: STF, 2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). ADI 5.509. Relator: Ministro Edson Fachin, 11 nov. 2021. Brasília, DF: STF, 2022.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). RE 636.886. Relator: Ministro Alexandre de Moraes, julgado em 20 abr. 2020. Brasília, DF: STF, 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 669.069. Relator: Ministro Teori Zavascki, 03 fev. 2016. Brasília, DF: STF, 2016.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 852.475. Relator para o acórdão: Ministro Edson Fachin. Relator: Ministro Alexandre de Moraes, 08 ago. 2018. Brasília, DF: STF, 2019.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Resolução n. 344, de 2022. Dispõe sobre a prescrição punitiva e o ressarcimento. Brasília, DF: Tribunal de Contas da União, 2022. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/data/files/EE/66/BC/12/F02F3810B4FE0FF7E18818A8/Resolucao-TCU-344-2022_prescricao_punitiva_e_ressarcimento.pdf. Acesso em: 30 jul. 2024.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Resolução n. 367, de 26 de junho de 2024. Dispõe sobre o procedimento de fiscalização e controle. Brasília, DF: TCU, 2024. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/data/files/9B/BC/56/76/00B9CBB9D9605C1F0E8C5D16/Resolucao-TCU-367-2024.pdf. Acesso em: 30 jul. 2024.
[1] Aluno do Mestrado Profissional do PMPD
[2] Aluno do Mestrado Profissional do PMPD
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 669.069. Relator: Ministro Teori Zavascki, 03 fev. 2016. Brasília, DF: STF, 2016.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 852.475. Relator para o acórdão: Ministro Edson Fachin. Relator: Ministro Alexandre de Moraes, 08 ago. 2018. Brasília, DF: STF, 2019.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). RE 636.886. Relator: Ministro Alexandre de Moraes, julgado em 20 abr. 2020. Brasília, DF: STF, 2020.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Mandado de Segurança 34.467 AgR. Relator: Ministra Rosa Weber, 08 mar. 2021. Brasília, DF: STF, 2021.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). RE 636.886. Relator: Ministro Alexandre de Moraes, julgado em 20 abr. 2020. Brasília, DF: STF, 2020.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 36.800. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, 12 mai. 2020. Brasília, DF: STF, 2020.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 3.611. Relator: Ministro Gilmar Mendes, 19 maio 2020. Brasília, DF: STF, 2020.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 36.223. Relator: Ministro Nunes Marques, 02 dez. 2021. Brasília, DF: STF, 2021.
[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 34.256. Relator: Ministro Roberto Barroso, 07 jan. 2022. Brasília, DF: STF, 2022.
[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). Mandado de Segurança 36.907 AgR. Relatora: Ministra Cármen Lúcia, 29 nov. 2021. Brasília, DF: STF, 2021.
[11] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Resolução n. 344, de 2022. Dispõe sobre a prescrição punitiva e o ressarcimento. Brasília, DF: Tribunal de Contas da União, 2022. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/data/files/EE/66/BC/12/F02F3810B4FE0FF7E18818A8/Resolucao-TCU-344-2022_prescricao_punitiva_e_ressarcimento.pdf. Acesso em: 30 jul. 2024.
[12] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Resolução n. 367, de 26 de junho de 2024. Dispõe sobre o procedimento de fiscalização e controle. Brasília, DF: TCU, 2024. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/data/files/9B/BC/56/76/00B9CBB9D9605C1F0E8C5D16/Resolucao-TCU-367-2024.pdf. Acesso em: 30 jul. 2024.
[13] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 37.596. Relator: Ministro Gilmar Mendes, 04 mai. 2023. Brasília, DF: STF, 2023.
[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). ADI 5.509. Relator: Ministro Edson Fachin, 11 nov. 2021. Brasília, DF: STF, 2022.
[15] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 38.790. Relator: Ministro Gilmar Mendes, 02 mar. 2023. Brasília, DF: STF, 2023.
[16] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 39.523. Relator: Ministro Edson Fachin, 15 fev. 2024. Brasília, DF: STF, 2024.
[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 39.529. Relator: Ministro Edson Fachin, 16 fev. 2024. Brasília, DF: STF, 2024.
[18] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 39.556. Relator: Ministro Cristiano Zanin, 27 fev. 2024. Brasília, DF: STF, 2024.
[19] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Decisão Monocrática). Mandado de Segurança 39.657. Relator: Ministro Flávio Dino, 27 fev. 2024. Brasília, DF: STF, 2024.
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