Ceanne Oliveira [*]

A política socioeducativa direcionada aos adolescentes em conflito com a lei é um tema que tem suscitado profundos debates e preocupações. Com o aumento da sensação de insegurança na sociedade, têm-se intensificado as discussões sobre a redução da maioridade penal e o aumento da rigidez nas medidas socioeducativas como forma de conter a prática de atos infracionais, principalmente aqueles cometidos mediante violência ou grave ameaça.

Trata-se de tema bastante delicado no âmbito do Direito da Criança e do Adolescente, tendo em vista que, sem uma implementação de políticas públicas adequadas para a ressocialização desses jovens, dificilmente será possível afastá-los de uma recidiva na prática de outras infrações e, por conseguinte, alcançar uma diminuição nas práticas ilícitas.

Com efeito, a experiência que vemos no cotidiano é a de que manter o jovem segregado, afastado da sociedade, sem a adoção de qualquer medida para a sua reinserção social, não promove a redução da delinquência.

A propósito, a Constituição da República, em seu artigo 227, consagra a doutrina da proteção integral às crianças e aos adolescentes. Segundo o mencionado dispositivo, são assegurados à criança, ao adolescente e ao jovem os direitos fundamentais, além de outros que são próprios das fases da infância e adolescência. Assim, conforme estabelecido nesse artigo, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar-lhes, com absoluta prioridade,

 o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.[1]

No referido dispositivo, observa-se que o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, inciso III, da Carta Magna como fundamento essencial do Estado Democrático de Direito, foi expressamente assegurado como direito fundamental das crianças, dos adolescentes e jovens, o que revela a especial dimensão da proteção constitucional a eles assegurada.

Ademais, a norma confere prioridade absoluta aos direitos da população infanto-juvenil, prevendo a responsabilidade compartilhada da família, da sociedade e do Estado para garantir a sua efetividade, estabelecendo, ainda, as diretrizes para a concretização das políticas públicas a eles direcionadas.

Compreendendo a doutrina da proteção integral como programa de ação, assinala Mário Luiz Ramidoff:

A doutrina da proteção integral enquanto programa de ação deve continuar vinculando as proposições legislativas e as atividades administrativas adotadas pelos gestores públicos assim como as medidas judiciais, pelo maior tempo possível, senão, o que for necessário para a (re)organização social e política da Nação brasileira (re)estruturando funcionalmente as intervenções estatais (Poder Público) para a (re)democratização das relações sociais que se desenvolvem comunitariamente na promoção e defesa dos direitos fundamentais afetos à infância e à juventude.[2] 

A fim de regulamentar a proteção constitucional conferida às crianças e aos adolescentes, foi instituído pela Lei n. 8.069, em 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA[3], o qual reconhece a condição peculiar das crianças e adolescentes de pessoas em desenvolvimento, definindo-os como sujeitos de direitos e conferindo-lhes absoluta prioridade. O Estatuto assegura-lhes, ainda, todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, os quais se aplicam a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de qualquer natureza. Na mencionada lei, também está assinalado que a responsabilidade de garantir os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes é compartilhada entre a família, a sociedade e o Estado. Cada um desses atores, dentro de suas respectivas responsabilidades, deve assegurar que os direitos básicos sejam cumpridos, promovendo o desenvolvimento saudável e a proteção integral da população infanto-juvenil. 

Segundo o disposto no artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente, [c]onsidera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

Do referido dispositivo, depreende-se que os menores de dezoito anos, na data da prática da infração, são inimputáveis, isto é, não cometem crime ou contravenção penal. No entanto, ao realizarem uma conduta descrita na legislação como crime ou contravenção penal, praticarão um ato infracional.

Além dos direitos individuais, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece diversas garantias para os menores em conflito com a lei, com especial destaque para a necessidade de observância do devido processo legal. Ademais, para aqueles adolescentes que se envolvem na prática de ato infracional, a legislação menorista prevê tratamento diferenciado daquele concedido aos adultos, visando não apenas à repressão ao ato ilícito, mas principalmente à ressocialização dos adolescentes. É nesse contexto que se insere a finalidade pedagógica das medidas socioeducativas.

Embora o ECA estabeleça as medidas socioeducativas, não apresenta parâmetros claros para a sua aplicação. Assim, com o objetivo de assegurar os direitos dos adolescentes em conflito com a lei e promover a sua ressocialização, foi instituído o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE pela Lei n. 12.594 de 2012[4], o qual estabelece as diretrizes para a execução dos serviços de atendimento socioeducativo e define as regras para a aplicação das medidas socioeducativas a adolescentes que cometeram atos infracionais.

O SINASE representou um avanço em tema de políticas públicas para os adolescentes que cometem atos infracionais. Desde a sua criação, tem-se buscado intensificar as políticas públicas que visam à proteção e à promoção dos direitos de adolescentes responsabilizados pela prática de atos infracionais, a exemplo dos programas implementados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceira com o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), os quais objetivam a promoção de alternativas que favoreçam a reintegração desses adolescentes à sociedade. No entanto, ainda são muitos os desafios que se apresentam para garantir a efetividade de suas normas, verificando-se, na prática, um constante descumprimento dos direitos e garantias previstos, como uma verdadeira reprodução dos problemas apresentados no sistema prisional de adultos.

Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou o Painel de Inspeções no Socioeducativo, que disponibiliza os dados das inspeções judiciais realizadas nas unidades socioeducativas de internação. A iniciativa atende a recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e da Organização das Nações Unidas (ONU), que enfatizam a importância da coleta constante de informações sobre o sistema socioeducativo, visando assegurar que o Estado proteja os direitos dos adolescentes. Com o lançamento do Painel, espera-se promover maior transparência e inovação na análise dos dados, permitindo o acompanhamento do acesso dos adolescentes aos seus direitos, além de ações de prevenção e combate à tortura e outras violações de direitos.

Em conclusão, a política socioeducativa voltada aos adolescentes em conflito com a lei é um tema de extrema relevância, que exige um equilíbrio entre a responsabilização dos jovens infratores e a promoção de sua reintegração à sociedade. O sistema socioeducativo, aliado a uma rede de apoio envolvendo a família, a sociedade e o Estado, deve priorizar a ressocialização, respeitando os direitos fundamentais dos adolescentes, conforme garantido pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A implementação de iniciativas como o Painel de Inspeções no Socioeducativo, criado pelo Conselho Nacional de Justiça, é um avanço significativo em termos de transparência e efetividade das políticas públicas direcionadas a esses jovens, mas ainda existem muitos desafios a serem superados em relação ao cumprimento das normas e à melhoria das condições do sistema. A manutenção de um compromisso contínuo com a proteção integral e a promoção dos direitos dos adolescentes é essencial para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, capaz de proporcionar oportunidades reais de reintegração e desenvolvimento para os jovens em situação de vulnerabilidade.

Referências  

BRASIL. [Constituição (1998)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12 fev. 2025.

 ______. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. 1990a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. Acesso em: 20 jan. 2025.

 ______. Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm. Acesso em: 20 jan. 2025.

 ______. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/novo-painel-consolida-dados-nacionais-sobre-o-sistema-socioeducativo/. Acesso em: 28 fev. 2025.

 RAMIDOFF, M. L. Sinase - Sistema nacional de atendimento socioeducativo. 2. ed., Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2016.  E-book. ISBN 9788547218386. Disponível em: https://stj.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788547218386/. Acesso em: 26 nov. 2024. p. 11.

 RAMIDOFF, M. L. 17 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Revista CEJ, Brasília, v. 11, n. 39, p. 79-83, out/dez. 2007.

 VERONESE, J. R. P. Das sombras à luz: o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

 


[1] BRASIL. [Constituição (1998)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12 fev. 2025.

 

[2] RAMIDOFF, M. L. 17 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Revista CEJ, Brasília, v. 11, n. 39, p. 79-83, out/dez. 2007.

 

[3]BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. 1990a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. Acesso em: 20 jan.2025.

 

[4] _______. Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm. Acesso em: 20 jan. 2025.

 [*] Ceanne Oliveira é mestranda no PMPD, UnB