Coletivo Legis-Ativo [1] e Ana Cláudia Farranha [2]

Estamos na última semana que antecede o pleito eleitoral, e, claro, como tem sido no Brasil dos últimos anos: uma eleição quente! Em todos os sentidos.

Para a reflexão que esse texto propõe, queremos aproveitar o momento e voltar a um tema que tem sido objeto de vários debates ao longo dos últimos anos: a regulação da internet no Brasil e seus desdobramentos no plano eleitoral e democrático.

Primeiro, as mudanças propostas pelo TSE na  Resolução nº 23.610/2019  que diz respeito à propaganda eleitoral e cujo escopo apresentou os seguintes contornos: a)  obrigatoriedade de avisos sobre o uso de IA em conteúdos eleitorais e proibição do uso de “deepfakes” (vídeos falsos criados com IA); b) fortalecimento dos mecanismos de verificação da autenticidade dos votos e ampliação da fiscalização e transparência dos processos eleitorais; c) novas regras sobre o uso de redes sociais e aplicativos de mensagens na campanha e regulamentação mais rigorosa sobre a veiculação de notícias falsas (fake news); d) incentivo à participação cidadã no acompanhamento e fiscalização do processo eleitoral e ampliação dos canais de denúncia e apuração de irregularidades; e) aprimoramento dos sistemas e ferramentas tecnológicas utilizados pelo TSE e maior celeridade nos julgamentos de processos e ações eleitorais.

Outro fato que também recorta a conjuntura é a queda de braço entre a Corte Suprema (STF) e o empresário e dono do X, Elon Musk. O embate se intensificou após a solicitação de suspensão de perfis investigados em inquérito por Alexandre de Moraes e com possibilidade de multa em caso de descumprimento. Em resposta, Musk decretou o fechamento do escritório da empresa no Brasil, que já não tinha uma sede oficial no país há cerca de dois anos. O empresário atribuiu o desfecho às “exigências de censura” do ministro do Supremo Tribunal Federal. Com isso, o STF intimou a empresa a apresentar um representante legal, situação que não aconteceu e que justificou a suspensão das atividades no Brasil. Além da falta de representante legal, Moraes apontou em sua decisão uma tendência da plataforma em inflar discursos extremistas. 

Nesses dois casos, o tema da regulação de plataformas digitais e seus usos, considerando a lógica algorítmica parece candente. Nesse sentido, e pensando a interface legislativa com o tema, é importante destacar quais propostas hoje existem na Câmara Federal. Como o Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como “PL das Fake News”, que visa propor regras de combate à desinformação na internet, assim como garantir a fiscalização, aplicar sanções e gerar a responsabilização das empresas. Porém, embora muito importante, esse projeto – que ainda está a nível de discussão – não se aparenta suficiente para abarcar a complexidade que essa nova dinâmica de poder possui perante a democracia.

Podemos agregar a essa discussão o conceito de capitalismo de vigilância, termo criado pela professora Shoshana Zuboff para nomear o mercado atual, baseado na comercialização e extração dos dados. Essa lógica é entendida por ela como a venda dos dados dos usuários, por gigantes da tecnologia, como o Google, a Microsoft e a Meta para os mais variados fins, sejam eles publicitários ou políticos. Quem detém os dados, por sua vez, possui o poder de ditar padrões de comportamento, já que a análise de dados por meio dos algoritmos tem se demonstrado cada vez mais personalizada e, portanto, capaz de influenciar mais precisamente cada um de nós. 

Com isso, democracias ao redor do mundo possuem um novo desafio. A internet que originalmente se apresentou como um projeto capaz de potencializar discussões diversas e dar visibilidade a pautas que por muito tempo estiveram à margem dos interesses hegemônicos, agora serve ao capitalismo de vigilância e a sua dinâmica conduzida por empresas privadas, em sua maioria, estadunidenses. Nesse sentido, diversos escândalos já foram denunciados, como foi o caso da Cambridge Analytica, empresa de consultoria política que obteve os dados de milhões de usuários do Facebook, e utilizou de maneira indevida para influenciar a opinião pública no contexto das campanhas políticas nos Estados Unidos e Reino Unido. 

Esse poder de influência é denominado por Zuboff como atributo de um poder instrumentário. A autora concede a ele a possibilidade dessas corporações de ditarem como e com qual frequência determinadas discussões ou ideais políticos podem ser difundidos nas redes. Isso porque, a forma em que essas inteligências de máquina atuam são incompreensíveis para nós, leigos, que estamos à mercê do “dilema dos dois textos”, que é a separação de informações em duas estruturas textuais. A primeira é o texto o qual todos os usuários têm acesso: publicações, vídeos, legendas. O segundo texto por sua vez, nada sabemos além do fato de que é composto pelos algoritmos que organizam como se dará a dinâmica e a “entrega” do primeiro texto.

Assim sendo, é sabido que os países que estão na periferia do capitalismo, como o Brasil, sofrem mais com o poder instrumentário, já que ele atua em prol da manutenção do capitalismo selvagem e da repreensão de qualquer pensamento crítico que se oponha a essa ordem. 

Se faz vital então, para fins principalmente de soberania, a proposição de uma regulação dessa lógica que torne minimamente compreensível os interesses algorítmicos ocultos do segundo texto, porém que reverberam no primeiro texto e consequentemente, na vida dos usuários. Porém, diferentemente da corrente que levanta a bandeira da regulação como sinônimo de ataque à liberdade de expressão, o objetivo aqui pretendido é trazer mais transparência à dinâmica que percorre os algoritmos.

Assim, aguardemos os resultados eleitorais, mas, aguardemos também o desenvolvimento de uma perspectiva regulatória que seja uma salvaguarda a democracia, respondendo aos desafios do singular século XXI e suas complexidades e sempre posicionando a construção de uma vontade soberana, capaz de (re)significar a  ideia clássica de um governo exercido em nome do povo e para o povo, refreando o apetite algoritmo. Vida longa à democracia!!!! 

[1] Coletivo Legis-Ativo. Projeto do Movimento Voto Consciente que reúne voluntariamente 20 cientistas políticos, em paridade absoluta de gênero espalhados por todas as regiões do país. As ações do coletivo envolvem a produção de textos analíticos e a apresentação, em parceria com organizações diversas, de podcasts.

[2] Ana Cláudia Farranha. Professora da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação Direito, Regulação e Políticas Públicas (PMPD) da Universidade de Brasília.

*Texto escrito em parceria com Eduarda Porcino, advogada e mestranda em Desenvolvimento Social pela UNIMONTES.

**Publicado originalmente em Congresso em Foco, 27.09.2024.