Gerenciamento dos processos no STJ antes da distribuição
Contribuição da triagem e análise da admissibilidade de recursos pela Presidência do STJ no controle do acervo e na missão constitucional do STJ
Diogo Verneque [*]
O número de processos recebidos pelo STJ em 2024 foi de 485.505 e ao final do ano o STJ possuía um acervo em trâmite de 332.569 processos, apesar de terem sido realizados quase 700 mil julgamentos .
Se todos os processos em trâmite no STJ ao final de 2024 fossem físicos e empilhados, chegariam à altura de aproximadamente 20 km , que corresponde a cerca de duas vezes a altura de cruzeiro de um avião comercial, ou mais de 24 vezes a altura do Burj Khalifa, o prédio mais alto do mundo que possui 828 metros distribuídos em seus 163 andares.
Os dados são realmente impressionantes e impactam desde os operadores do direito ao cidadão comum, causando perplexidade a qualquer juiz integrante de Poder Judiciário de outros países ao tomarem conhecimento de que em 2024 um único tribunal como o STJ, composto de trinta e três ministros proferiu cerca de 3.000 julgados por dia útil.
Para fazer frente a esses números, sob a regência de cada um dos Ministros integrantes do Tribunal da Cidadania, existe uma equipe de servidores, colaboradores e estagiários trabalhando para preparar os processos e minutas que serão apreciadas.
Mas antes de serem distribuídos aos ministros, há vários anos foi instituída uma política judiciária voltada à identificação e resolução de processos potencialmente inaptos.
Essa política consiste na intimação da parte para saneamento de óbices passíveis de regularização e, não saneado o óbice ou sendo caso de óbice insanável, abre-se ao Presidente a atribuição para não conhecer do recuso. Ou seja, são processos que originariamente seriam distribuídos para um ministro relator, mas, em razão de não preencherem requisitos necessários para a apreciação do conteúdo de mérito, são decididos pela própria Presidência.
Com isso, uma quantidade menor de recursos e com maior perspectiva de terem seus méritos apreciados passam a ser efetivamente distribuídos, contribuindo para que os ministros tenham mais tempo para se dedicar à análise do julgamento do mérito, concentrando-se na missão constitucional do STJ de “definir o sentido da lei federal e de garantir a sua uniformidade no território nacional” .
A atuação antes da distribuição teve início ainda no ano de 2007 na iniciativa do então Ministro Presidente Humberto Gomes de Barros, com a criação e inserção do Núcleo de Agravos da Presidência na estrutura orgânica do STJ pois, até então, o Presidente tinha apenas atribuição jurisdicional em hipóteses pontuais e restritas (competência exclusiva) , mas desde então cresceu numericamente e em importância institucional.
A título ilustrativo, em 2006, antes da criação da competência prévia à distribuição, o STJ recebeu 277.251 processos e foram distribuídos entre os trinta ministros integrantes dos órgãos fracionários 246.487 processos, enquanto que 4.533 foram registrados à Presidência . Dezoito anos depois, já em 2024, o número de processos recebidos aumentou em 75% para 485.505, mas os processos distribuídos aos relatores aumentaram apenas 19%, em grande medida decorrente do aumento de quase 50 vezes o número de processos registrados à Presidência .

Atualmente, a atuação da Presidência antes da distribuição conta com o apoio da Assessoria de Admissibilidade, Recursos Repetitivos e Relevância (ARP) e encontra-se regulamentada no art. 21-E do Regimento Interno do STJ envolvendo, dentre outras atribuições, principalmente as referentes ao (i) indeferimento liminar de habeas corpus e revisões criminais por incompetência do STJ, (ii) não conhecimento de recurso que não preencha os requisitos de admissibilidade recursais, e (iii) à devolução ao Tribunal de origem dos recursos fundados em controvérsia já submetida ao rito dos recursos repetitivos para adoção das medidas cabíveis.
Para se ter uma ideia desse trabalho, o relatório estatístico do STJ de 2024 consignou que dos 485.505 processos recebidos naquele ano, 221.187 foram registrados à Presidência (214.467 por triagem prévia e 6.720 por competência exclusiva) ou 45% de todo o recebimento .
Ainda em 2024, a Presidência do STJ proferiu 317.194 decisões, ou 37% das 857.142 proferidas em todo o tribunal. E nesse mesmo ano foram baixados em decorrência da atuação da Presidência, sem sequer serem distribuídos, 140.049 processos do total de 468.287 baixados pelo tribunal, que equivalem a cerca de 30% do total .
Isso sem contar que essa política judiciária também contribui para a redução nos tempos médio para primeira decisão e de tramitação do processo, que vem caindo nos últimos anos, considerando que foi de 296 dias em 2016 , 232 dias em 2018, 129 dias em 2021 e 127 dias em 2024 .
Como se percebe, atualmente a atuação prévia da Presidência do STJ tornou-se indispensável para o funcionamento regular do próprio STJ, afinal, retirar essa estrutura resultaria imediatamente numa avalanche extra de processos nos gabinetes.
E ao fazer uma análise desde a instalação do STJ, é possível constatar que nos 18 primeiros anos (entre 1989 e 2006), em apenas duas oportunidades (1994 e 2005), o Tribunal conseguiu julgar mais processos do que distribuídos. Por sua vez, nos 18 anos seguintes (entre 2007 e 2024), por dez vezes (2008, 2010, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021 e 2022), foram julgados mais processos do que os distribuídos, conforme se verifica do gráfico abaixo :

E esse último período de 18 anos coincide exatamente com o início da prática de análise de processos pela Presidência antes da distribuição, que não foi a única iniciativa , mas sem dúvida teve um papel de destaque para se chegar à situação atual.
Ocorre que a ampliação e recrudescimento na aferição e aplicação de óbices recursais que impedem a apreciação de mérito do recurso ressalta, cada vez mais, a tão criticada jurisprudência defensiva.
Assim, coloca-se o STJ de um lado a utilizar do expediente da atuação firme na análise dos pressupostos recursais no controle do acervo a fim de que os gabinetes possam atuar na missão constitucional do STJ ou, de outro, buscar cumprir sua competência constitucional em dar o correto sentido da legislação federal em cada caso que bate às portas do Tribunal da Cidadania, mas permitindo um crescimento ainda maior do acervo pendente de julgamento.
Não há resposta fácil a este dilema. Conforme já diagnosticado por Luiz Guilherme Marinoni: “O STJ, a despeito da sua missão constitucional de dar unidade ao direito federal, hoje não tem condições adequadas para exercer funções proativas. Muitas vezes, por exercer função unicamente reativa, acaba assumindo a natureza de um terceiro grau de jurisdição”.
E o próprio criador da política judiciária de atuação da Presidência antes da distribuição, Ministro Humberto Gomes de Barros, já antevia em 2008 que “o Nupre não é solução.” Segundo ele a prática apenas atenua uma emergência “para salvar o Tribunal de uma insolvência iminente”. Para ele, a solução passa por mecanismos de redução da quantidade de ações que chegam ao Tribunal.
Bibliografia
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STJ. Brasil. Relatório estatístico anual do STJ de 2024. Disponível em https://www.stj.jus.br/docs_internet/processo/boletim/2024/Relatorio2024.pdf. Acesso em 8/3/2025.
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Notas
[1] Relatório estatístico anual do STJ de 2024, pág. 7 e 15. Disponível em https://www.stj.jus.br/docs_internet/processo/boletim/2024/Relatorio2024.pdf. Acesso em 8/3/2025.
[1] Considerando uma média bastante conservadora de dois ou três volumes por processo (cerca de 500 folhas), cada um deles teria ao menos 6 cm de altura.
[1] Política Judiciária entendida como a atuação do Judiciário “como formulador de políticas públicas direcionadas especificamente para esse poder”, conforme identificado por Jeovan Assis da Silva, Pedro de Abreu e Lima Florêncio no artigo Políticas judiciárias no Brasil: o Judiciário como autor de políticas públicas.
[1] MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte suprema. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 119.
[1] Ato Regulamentar do STJ n. 2 de 5 de julho de 2007. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/items/4e283e3c-4fa4-442a-9b28-3036bacbc8e3. Acesso em 8/3/2025.
[1] A competência exclusiva da Presidência se dá, por exemplo, na análise de concessão de exequatur a cartas rogatórias (art. 216-O do RISTJ), na homologação de sentenças estrangeiras (art. 216-A do RISTJ) e na apreciação dos pedidos de suspensão da execução de medida liminar ou de sentença (art. 271 do RISTJ).
[1] Relatório estatístico anual do STJ de 2006, págs. 09 e 28. Disponível em https://www.stj.jus.br/docs_internet/processo/boletim/2006/Relatorio2006.pdf. Acesso em 8/3/2025
[1] Relatório estatístico anual do STJ de 2024, pág. 7. Disponível em https://www.stj.jus.br/docs_internet/processo/boletim/2024/Relatorio2024.pdf. Acesso em 8/3/2025
[1] Desde sua criação, em 2007, o Napre já adotou diferentes nomes, como Nupre, Nurer, Narer e atualmente ARP, mas sempre com o mesmo propósito de assessoramento da Presidência antes da distribuição.
[1] Relatório estatístico anual do STJ de 2024, págs. 7 e 8. Disponível em https://www.stj.jus.br/docs_internet/processo/boletim/2024/Relatorio2024.pdf. Acesso em 8/3/2025
[1] Relatório estatístico anual do STJ de 2024, pág. 8. Disponível em https://www.stj.jus.br/docs_internet/processo/boletim/2024/Relatorio2024.pdf. Acesso em 8/3/2025
[1] Relatório estatístico anual do STJ de 2022, pág. 17. Disponível em https://www.stj.jus.br/docs_internet/processo/boletim/2022/Relatorio2022.pdf. Acesso em 8/3/2025.
[1] Relatório estatístico anual do STJ de 2024, pág. 17. Disponível em https://www.stj.jus.br/docs_internet/processo/boletim/2024/Relatorio2024.pdf. Acesso em 8/3/2025.
[1] Relatório estatístico anual do STJ de 2024, pág. 25. Disponível em https://www.stj.jus.br/docs_internet/processo/boletim/2024/Relatorio2024.pdf. Acesso em 8/3/2025.
[1] Por óbvio, esta não foi a única causa da redução dos processos pendentes de julgamento nos últimos anos, que também contou com a relevante contribuição da implementação do rito dos recursos repetitivos em 2008, da digitalização dos processos a partir de 2009, o incremento paulatino do número de servidores nos gabinetes de ministros, com a adoção crescente da inteligência artificial a partir de 2018 e, em breve, espera-se se somar com a regulamentação e implementação do filtro da relevância da questão federal.
[1] Marinoni, Luiz Guilherme. STJ precisa cumprir seu papel constitucional. Conjur. Disponível em https://www.conjur.com.br/2012-abr-10/primeiro-grau-efeitividade-stj-cumpra-papel. Acesso em 8/3/2025.
[1] Núcleo criado no STJ ajuda a desafogar gabinetes de ministros. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. Disponível em https://www.conjur.com.br/2008-jul-08/nucleo_criado_stj_ajuda_desafogar_gabinetes. Acesso em 8/3/2025.
[*] Diogo Verneque é mestrando no PMPD, UnB.
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