Clarisse Cavalcanti

1.     Introdução

O conceito de direito ao esquecimento tem sua origem no droit à l’oubli que tinha como propósito, inicialmente, permitir que o condenado que cumpriu a pena se distanciasse dos acontecimentos do passado, a fim de ser ressocializado e reintegrado à sociedade (FRAJHOF, 2019).

Instado a se manifestar a respeito do direito ao esquecimento, o Supremo Tribunal Federal, em 11.2.2021, fixou tese no Recurso Extraordinário n. 1.010.606/RJ, conhecido como o Caso Aída Curi (Tema 786)[1].

O presente trabalho tem por objetivo analisar como o Supremo aplica essa tese nas reclamações constitucionais e se há ponderação entre os direitos fundamentais em conflito no caso concreto.

2. Metodologia

Para fins deste artigo, realizou-se pesquisa de jurisprudência no sítio do Supremo Tribunal Federal[2] com o termo de busca “direito ao esquecimento” e selecionou-se o filtro para a classe das reclamações, restringindo a pesquisa a partir de 11.2.2021, data do julgamento do Recurso Extraordinário n. 1.010.606/RJ no qual foi definido o Tema 786. Foram encontradas 13 (treze) reclamações.

3. Resultados

3.1 Análise do acórdão no Recurso Extraordinário n. 1.010.606/RJ (Tema 786)

Em onze de fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário n. 1.010.606/RJ interposto pelos quatro irmãos da falecida Aída Curi contra a Globo Comunicação e Participações Ltda. por causa do televisionamento, no programa “Linha Direta Justiça”, de reportagem na qual se reencenava seu assassinato, ocorrido em 1958.

Fixou-se a seguinte tese:

É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível[3].

3.2 Análise das Reclamações Levantadas

Inicialmente, faz-se necessária uma breve digressão sobre o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 130 e sua relação com o Tema 786. Em 30.4.2009, o STF decidiu que a Constituição de 1988 não recepcionou a Lei de Imprensa (Lei n. 5.250/1967) e reconheceu a prioridade da liberdade de imprensa na nova ordem constitucional. Esse julgamento tem sido usado por veículos de comunicação para fundamentar reclamações no Supremo, especialmente em questões relacionadas ao direito ao esquecimento.

Das 13 (treze) reclamações levantadas, 5 (cinco) não merecem maiores considerações neste estudo, ou por não terem sido conhecidas ou porque não tinham o Tema 786 como paradigma ou como fundamento da decisão. As 8 (oito) reclamações restantes serão analisadas a seguir.

Nas Reclamações n. 46.059/SP e 45.432 ajuizadas por S.A. O Estado de São Paulo, o Supremo reverteu acórdãos que determinavam ao jornal que retirasse de seu sítio eletrônico matérias publicadas há quase duas décadas, na primeira reclamação e há mais de dez anos na segunda. As notícias tratavam de fatos sem relevância pública ou histórica referentes a pessoa que não poderia ser caracterizada como pública.

A Ministra Rosa Weber, na Reclamação n. 49.459, cassou o acórdão reclamado proferido pelo Colégio Recursal da Capital/SP que condenava o jornal Folha de São Paulo a retirar notícia que trazia informações a respeito da prisão de uma mulher por furto.

Já a Rede Globo ajuizou as Reclamações n. 50.661 e n. 55.529, julgadas procedentes para cassar as decisões reclamadas que determinavam a retirada de matérias que narravam fatos cuja veiculação atual não seria de interesse público.

Na Reclamação n. 50.905, ajuizada por jornalista, o Ministro Dias Toffoli, Relator, cassou acordão do Tribunal de Justiça de São Paulo fundamentando sua decisão na ADPF n. 130 e no Tema 786.[4]

A Reclamação n. 56.027 foi protocolada pela NN&A Produções Jornalísticas Ltda, tendo o Ministro Ricardo Lewandowski, Relator, cassado o acórdão reclamado pelo qual se determinava a edição de matéria jornalística ou sua exclusão integral.

A Reclamação n. 60.309, fundamentada em descumprimento da ADPF n. 130 e do Tema 786, foi ajuizada pela proprietária de um sítio de notícias na internet. O Ministro Dias Toffoli, Relator, deixou de se manifestar a respeito do Tema 786 como fundamento da reclamação e afastou a ADPF n. 130 como paradigma aplicável ao caso, mas negou seguimento à reclamação por entender que a exposição do nome de policial militar em matéria jornalística, publicada há um ano e meio, poderia resultar em risco de vida em razão de ter enfrentado organização criminosa. Manteve-se, por consequência, decisão do Tribunal de origem no sentido da retirada da matéria.

 3.3 Tabela Comparativa

A tabela abaixo destaca os elementos fáticos postos nas reclamações examinadas.

Número
da RCL

Veículo de Comunicação
que ajuizou a RCL

A pessoa objeto da reportagem
era pessoa pública?

A pessoa objeto da
reportagem estava
sendo acusada de crime?

A pessoa foi
condenada?

A notícia tem
relevância social
ou histórica?

Passagem do tempo
entre a publicação da matéria e o
ajuizamento da ação

Ao final, o STF
autorizou a
retirada da matéria?

45.432

S.A. O Estado de São Paulo

Não

sim

não

não

Mais de 10 anos

não

46.059

S.A. O Estado de São Paulo

Não

sim

não

não

Quase 20 anos

não

49.459

Empresa Folha da Manhã S.A.

Não

sim

não

não

5 anos

não

50.661

Globo Comunicação
e Participações S.A.

Não

sim

não

não

3 anos

não

50.905

Luis Nassif

Sim

não

não se aplica

sim

7 meses 

não

55.529

Globo Comunicação
e Participações S.A.

Não

sim

não

não

Não há informações

não

56.027

NN&A Produções
Jornalísticas Ltda

não (mas ela se manifestava
a respeito de pessoa pública)

não

Não se aplica

sim

3 anos

não

60.309

P.J.

Não

sim

não

não

1 ano e meio

sim

4. Discussão dos resultados

O estudo confirma que o Supremo tem priorizado a liberdade de expressão, mesmo em situações nas quais a passagem do tempo e a irrelevância histórica poderiam justificar a exclusão de notícias. Apenas em 1 (uma) reclamação (Reclamação n. 60.309) manteve-se a decisão do Tribunal de origem que determinava a retirada da matéria. Mas esta reclamação destoa das outras não por ter sido objeto de aplicação confessa da segunda parte do Tema 786, mas porque, apesar de conter os mesmos elementos das demais, o pedido da proprietária do sítio de notícias não foi atendido e a reclamação foi julgada com outros fundamentos e sem menção ao Tema 786.

Conclui-se que a tese fixada no Recurso Extraordinário n. 1.010.606 é aplicada apenas em sua primeira parte, enquanto a segunda não tem aplicação prática, mesmo quando de fato realizada, na reclamação, uma ponderação de princípios em vista da situação específica, como se deu na Reclamação n. 60.309.

A falta de análise fática detalhada nas reclamações sugere uma tendência do Tribunal em proteger a liberdade de expressão em detrimento dos direitos de personalidade. De bom alvitre lembrar que, não apenas a liberdade de expressão, mas também os direitos da personalidade, têm relação com o princípio democrático (MANSUR; SOARES, 2020).

Faz-se necessário que o Poder Judiciário, em uma época em que lembrar se tornou a norma e esquecer a exceção (MAYER-SCHONBERGER, 2009), ofereça parâmetros de proteção à privacidade, entendida esta não apenas como um direito de reclusão ou de ser deixado a sós como pugnavam Warren e Brandeis em célebre artigo (1890), mas também como direito de controle da divulgação de “informações a ele relacionadas” (RODOTÀ, 2008, p. 92).

Referências

FRAJHOF, Isabella Z. O Direito ao Esquecimento na Internet. São Paulo: Almedina 2019.

MANSUR, Rafael; SOARES, Felipe Ramos Ribas. A Tese da Posição Preferencial da Liberdade de Expressão Frente aos Direitos da Personalidade: Análise Crítica à Luz da Legalidade Constitucional. In: SCHREIBER, Anderson; MORAES, Bruno Terra de; TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. (Coord). Direito e Mídia Tecnologia e Liberdade de Expressão. Indaituba: Editora Foco, 2020. p. 29-53.

MAYER-SCHONBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, Edição kindle, 2009.

RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

WARREN,  Samuel  D.;  BRANDEIS,  Louis  D. The  Right  to  Privacy.  Harvard  Law Review, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890.


[1] RE 1.010.606/RJ, Tema 786, Relator o Ministro Dias Toffoli, Plenário, DJ 20.5.2021.

[2] (https://www.portal.stf.jus.br)

[3] Recurso Extraordinário n. 1.010.606/RJ com repercussão geral, Relator o Ministro Dias Toffoli, Supremo Tribunal Federal, DJ 20.5.2021, p. 331.

 [4] Reclamação n. 50.905, Relator o Ministro Dia Toffoli, decisão monocrática, DJe 2.6.2022.