O Julgamento do RE 1.492.256 pelo STF
Os Novos Limites da Inviolabilidade de Domicílio nos Crimes de Tráfico de Drogas
Lídio Carlos da Silva Júnior [*]
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar os embargos de divergência no RE n. 1.492.256, em sessão virtual encerrada no dia 14 de fevereiro de 2025, adicionou um novo capítulo à controversa questão da proteção constitucional à inviolabilidade de domicílio nos crimes de tráfico de drogas. Por maioria, a Corte reconheceu a licitude das provas colhidas a partir da busca e apreensão domiciliar, anulando o acórdão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, no REsp n. 2.074.071, havia absolvido o acusado por considerar ilegais a busca pessoal e a entrada no domicílio, devido à ausência de “fundadas razões”.
Esse julgamento, ao consolidar um novo precedente sobre a extensão da proteção constitucional da inviolabilidade de domicílio, reacende um importante debate sobre os limites da atuação policial em buscas realizadas sem autorização judicial. A decisão, ao flexibilizar o conceito de flagrante, amplia as hipóteses de ingresso em domicílio sem mandado, o que pode ter implicações significativas para a atuação policial. Cabe indagar se essa mudança representa, de fato, uma ampliação do alcance das permissões legais para a entrada em imóveis, ou seria, na realidade, um mero aprimoramento dos critérios já estabelecidos no Tema 280 do STF, que trata da necessidade de justificativa prévia para tais buscas?
O caso teve origem em Curitiba (PR), quando policiais militares, em patrulhamento, perceberam um veículo cujos ocupantes demonstraram nervosismo ao avistá-los. Em seguida, uma mulher descartou um porta-moedas pela janela do carro, um homem fugiu por um córrego próximo e outro correu para dentro de uma residência. Após encontrarem drogas no porta-moedas e obterem a autorização da mãe de um dos acusados, os agentes ingressaram no imóvel e localizaram uma grande quantidade de entorpecentes.
O Superior Tribunal de Justiça anulou as provas, sustentando que a entrada sem mandado judicial exigiria uma investigação prévia, ainda que breve, ou campana no local para a configuração do flagrante que justificasse a abordagem. A Segunda Turma do STF manteve essa decisão. O Ministério Público do Paraná (MP-PR) interpôs embargos de divergência, argumentando que a Primeira Turma da Corte já havia validado abordagens semelhantes. No Plenário, o STF reformou a decisão do STJ, restabelecendo a condenação imposta pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR).
O voto do ministro Alexandre de Moraes foi decisivo ao afirmar que a atuação policial pode se basear em elementos probatórios mínimos que indiquem a situação de flagrante – não sendo necessária a “certeza absoluta” da ocorrência do crime, mas apenas a existência de “fundadas razões”. O relator destacou que a decisão do STJ contrariava o Tema 280 do STF, que exige que a entrada forçada em domicílio sem mandado seja respaldada por uma prévia justificativa, sob pena de nulidade dos atos. No entanto, a decisão do STF amplia a interpretação sobre o que pode configurar tais "fundadas razões", tornando mais flexível a possibilidade de ingresso sem autorização judicial.
Para Moraes, o comportamento dos suspeitos – a fuga e a detecção prévia de drogas – seriam suficientes para a configuração das “fundadas razões”, dispensando a necessidade de comprovação da certeza do delito no exato momento da abordagem para justificar a entrada no imóvel. Ele enfatizou ainda a natureza permanente dos crimes de tráfico e associação para o tráfico, entendimento que sustenta que o estado de flagrante não se extingue enquanto houver posse da droga, o que permitiria a atuação policial a qualquer momento. Em contrapartida, os ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes divergiram, entendendo como incabíveis os embargos de divergência.
A decisão do STF aponta para uma tendência de ampliação das hipóteses de ingresso em domicílio sem mandado judicial, especialmente em investigações relacionadas ao tráfico de drogas. Essa interpretação parece expandir o poder policial, permitindo que comportamentos minimamente suspeitos sejam usados como justificativa para abordagens e entrada em imóveis sem autorização judicial. Isso levanta sérias preocupações quanto à segurança jurídica e à proteção dos direitos fundamentais. Além disso, ao enfatizar a natureza permanente do delito, o julgamento pode ampliar o conceito de flagrante, o que gera questionamentos sobre sua compatibilidade com a tese estabelecida no Tema 280 do STF.
Independentemente da existência, no caso concreto, de suspeitas fundamentadas para a busca pessoal, esse entendimento parece flexibilizar o controle sobre a exigência de justificativa prévia para a entrada em imóveis sem mandado, permitindo que as buscas domiciliares se baseiem unicamente nas impressões subjetivas dos agentes. Isso representa um desafio para os tribunais estaduais e para o próprio STJ, que precisarão reavaliar seus posicionamentos à luz desse precedente. A falta de critérios objetivos claramente definidos pode resultar em decisões divergentes, ampliando a insegurança jurídica.
Outro aspecto relevante é o impacto sobre populações vulneráveis, especialmente em áreas periféricas, onde operações policiais frequentemente envolvem abordagens arbitrárias e invasões domiciliares. Esse padrão de atuação, já evidenciado em pesquisas do IPEA realizadas em 2023, reforça a necessidade de mecanismos que evitem a perpetuação de práticas abusivas e garantam a proteção dos direitos fundamentais. A expansão dessas práticas tende a acentuar a seletividade do sistema penal e ampliar o risco de abusos, tornando ainda mais urgente um controle judicial rigoroso sobre as diligências policiais.
Para prevenir arbitrariedades, é crucial a definição de requisitos mínimos objetivos e previamente estabelecidos para a configuração das "fundadas razões", garantindo uma proteção mais robusta aos direitos fundamentais. Nesse contexto, torna-se indispensável a definição de critérios claros que evitem a aplicação indiscriminada das exceções que autorizam buscas domiciliares sem mandado judicial. A implementação de um controle judicial rigoroso, juntamente com a delimitação precisa do que constitui "fundadas razões" e a exigência de parâmetros objetivos para a validação do consentimento do morador, é essencial para equilibrar a eficácia das políticas de segurança pública com a proteção das liberdades constitucionais.
A decisão do STF no RE n. 1.492.256 não apenas redefine os critérios para a atuação policial, mas também impõe a necessidade urgente de um debate sobre os limites entre a repressão ao tráfico de drogas e a garantia das liberdades constitucionais. Embora o objetivo seja fortalecer o combate ao crime, é essencial que a flexibilização dos critérios não se transforme em um precedente que legitime abusos e arbitrariedades, comprometendo o equilíbrio entre segurança pública e direitos fundamentais.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 1 mar. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 1492256. Relator: Min. Edson Fachin. Julgamento em 14 de fevereiro de 2025. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 1 mar. 2025.
IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Perfil do processado e produção de provas nas ações criminais por tráfico de drogas. Rio de Janeiro: Ipea, nov. 2023. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/12376/1/RI_Perfil_producao_provas.pdf. Acesso em: 9 mar. 2025.
IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Entrada em domicílio em caso de crimes de drogas: geolocalização e análise quantitativa de dados a partir de processos dos tribunais da justiça estadual brasileira. Rio de Janeiro: Ipea, nov. 2023. Disponível em: https://www.econstor.eu/bitstream/10419/285385/1/TD2946.pdf. Acesso em: 9 mar. 2025.
[*] Lídio Carlos da Silva Júnior é Mestrando do Programa Direito, Regulação e Políticas Públicas (PMPD) – Universidade de Brasília (UNB).
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