O método integrativo, previsto no regime de transição da ADPF 828, como política promissora na resolução de conflitos fundiários
Ana Paula Vilela de Pádua
Ao lado dos direitos políticos e individuais a Constituição incorporou regras de direitos sociais que consideram o indivíduo em sua dimensão comunitária, permitindo o exercício da cidadania e elevando sua condição de vida.
O acesso à moradia é um direito fundamental com suporte normativo na Constituição Federal (art. 6º) e em diversos tratados internacionais, cuja eficácia impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva, a demandar a elaboração de políticas públicas habitacionais.
A atuação dos órgãos jurisdicionais nesta seara se direciona a conferir a maior eficácia possível aos direitos fundamentais no sistema jurídico, quando da aplicação, interpretação e integração das normas.
Nesta perspectiva, a efetividade do direito à moradia, especialmente nas hipóteses em que há um conflito fundiário, reclama um processo participativo, integrado por todas as esferas do poder público, mediante um diálogo interinstitucional do qual participe, também, a população interessada, o Ministério Público e a Defensoria Pública, em um esforço conjunto para a concretização do direito.
Observa-se que o Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência consolidada de que o Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar à Administração Pública a adoção de medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente previstos, a exemplo do direito à moradia, sem que isso configure violação ao princípio da separação de poderes.
Nesse sentido, foram proferidas decisões pela Suprema Corte nos autos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 828 que buscaram resguardar o direito à moradia digna às populações mais vulneráveis durante a pandemia, impedindo o cumprimento de mandados de reintegração de posse, fazendo apelo ao legislador para prorrogar a vigência do prazo de suspensão das ordens de despejo, bem como estabelecendo um regime de transição para a retomada, de forma gradativa, das determinações de desocupação para minimizar o impacto habitacional após o período da pandemia.
O regime de transição nela estabelecido exigiu a observância de vários requisitos, dentre eles a instauração de uma Comissão de Conflitos Fundiários, com a participação de diversos atores, tais como a Defensoria Pública, o Ministério Público e as Secretarias de Estado, de onde resultou o estabelecimento de um diálogo interinstitucional na promoção do direito à moradia.
É importante destacar que o escopo da ADPF 828 foi o de restringir a reintegração de posse apenas em moradias de natureza coletiva, de modo que o regime de transição alcançou diversos núcleos residenciais que se conformavam em verdadeiros bairros já estabelecidos, embora informais.
Esse recorte acerca do alcance da ADPF 828 ganha relevo uma vez que a simples desocupação dos moradores desses bairros informais – grande parte consolidada a partir de um fenômeno urbano de desenvolvimento desordenado –, sem uma medida garantidora do direito à moradia, colocaria essas pessoas, mais uma vez, em situação de vulnerabilidade por uma atuação do Estado.
Dessa forma, a ADPF 828 inseriu instrumentos à disposição do juiz para solucionar conflitos fundiários, dando concretude ao modelo cooperativo de processo trazido pelo art. 6º do CPC/2015, que pressupõe a efetiva participação das partes nas decisões judiciais, em observância ao princípio da cooperação.
O regime de transição estabelecido na ADPF 828 passou a ser estruturado sobre uma base normativa, numa espécie de arranjo institucional entre os poderes, que dispôs acerca das diretrizes para a realização das audiências de mediação e da postergação do cumprimento das remoções de forma mais sistemática. Nesse contexto foi editada a Lei nº 14.216/2021, bem como editadas a Resolução 510/2023 e a Recomendação 90/2021, ambas do Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
A Resolução 510/2023 do CNJ foi concebida como política pública estruturante, tendo em vista que os procedimentos prévios à desocupação nela estabelecidos, tais como as visitas técnicas e as audiências de mediação e conciliação, não possuem limitação temporal, mas se projetam de forma continuada e mandatória para qualquer controvérsia fundiária de natureza coletiva.
A título de interesse, registra-se que a obrigatoriedade de instalação das Comissões de Conflitos Fundiários inspirou a realização, em 27/06/2024, da 1ª Oficina de Soluções Fundiárias promovida pelo CNJ que utilizou uma metodologia de treinamento para magistrados atuarem nesta seara.
Por essa razão as diretrizes estabelecidas na ADPF 828 e densificadas, sobretudo, na Resolução 510/2023 do CNJ serviram como proteção e para resolução de casos de litigiosidade envolvendo o direito à moradia de populações de baixa renda que residiam em comunidades estabelecidas há tempo razoável de forma legítima e cujo conflito foi intensificado após o período da pandemia.
Nesse contexto, a ADPF 828, cujas decisões foram marcadas pela excepcionalidade, transitoriedade e emergência decorrente da crise sanitária, adquiriu, após a cessação da pandemia e com o estabelecimento do regime de transição, um viés garantidor do direito à moradia, mediante o diálogo interinstitucional para promover uma análise mais cuidadosa e criteriosa sobre a situação de comunidades que necessitam de um plano de urbanização e regularização fundiária.
A despeito da característica de transitoriedade próprio de um regime como tal, a forma de atuação nele estabelecida acabou sedimentando-se e passando a ser aplicada a uma infinidade de casos em que controvertida a posse de natureza coletiva, mesmo após a cessação da crise sanitária, conferindo-se, portanto, uma maior densidade ao direito à moradia.
Assim, o regime de transição constituiu-se em mais um elemento de ponderação na designação de áreas em litígio. Além disso, contribui para manter aberto o diálogo institucional entre os diversos atores envolvidos no conflito fundiário, inclusive com os moradores, tendo ocorrido em algumas hipóteses a proposição de plano de realocação das famílias afetadas.
Dessa forma, o diálogo levado a efeito pela autoridade da decisão da ADPF 828 pode abrir novos caminhos para demandas fundiárias que são inicialmente apresentadas para a remoção da população de forma desconectada de um programa de ação governamental, podendo contribuir para a formulação de política pública, a ser construída ao longo da tramitação do processo.
A decisão proferida na ADPF 828 permitiu que, nos casos concretos julgados sob o seu enfoque, fosse superado o mecanismo clássico de construção de decisão judicial baseada exclusivamente no direito individual.
Fez suplantar, dessa forma, o que Vanice Valle e Paula Dias (2018, p. 240) relataram em trabalho acadêmico como a má qualidade institucional da proteção ao direito à moradia pelo Judiciário, que dá preferência às demandas individuais, diante do caráter formalista dos profissionais do direito. Esse tipo de abordagem, que se pretende superar, “estimula o uso do Poder Judiciário como recurso de barganha de protagonistas e antagonistas, ou como veículo para a negativa de direitos fundamentais” (ARAÚJO, 2021, p. 24). Já a abordagem do Direito sob enfoque da proteção social, busca a solução do conflito subjacente à relação processual e não apenas a finalização do processo.
As questões fundiárias, quando judicializadas, são muito complexas, por envolverem direitos e princípios fundamentais que emergem em uma situação fática com grande tensão social.
Por isso, é preciso garantir, de forma efetiva, a escuta da outra parte para saber de suas reivindicações e preferências, enquanto sujeitos afetados. Não por outro motivo, “fora ou dentro do contexto judiciário, o discurso em prol da adoção de técnicas de negociação, mediação e conciliação, com suas diversas nuanças diferenciadoras, vem ganhando corpo como mecanismos de resolução adequada de disputas (RAD), dentro de um sistema multiportas de solução de conflitos” (SOUZA, 2016, p. 139).
Além disso, possibilitar o diálogo, dentro do sistema institucional, entre os grupos de cidadãos que serão afetados pela tomada de decisão é uma forma de evitar que seja de antemão já favorecida algumas das partes. Daí a relevância de “contar com um bom sistema institucional, que trate todos os cidadãos com igual consideração e respeito” (GARGARELLA, 2008, p. 173).
O diálogo está no centro de qualquer abordagem sobre teoria da justiça. Nas percucientes palavras de Amartya Sen (2011, p. 120):
O diálogo e a comunicação não são apenas partes do objeto de estudo da teoria da justiça (temos boas razões para sermos céticos quanto à possibilidade de uma “justiça não discutida”), mas também a natureza, a robustez e o alcance das próprias teorias propostas dependem de contribuições com base em discussões e debates.
As vantagens estratégicas que podem advir das mediações como método para a resolução de conflitos de alta complexidade, que envolvem múltiplos interesses, concentram-se sobretudo no comprometimento político-jurídico dos atores processuais envolvidos, o que tende a aumentar a possibilidade de pacificação social.
A experiência demonstra que para avançar na direção da plena eficácia do direito fundamental à moradia, não basta a existência de normas programáticas, mas sim de ações que concretizem na prática a igualdade material para a população, sem perder de vista que a moradia deve vir atrelada não apenas à habitabilidade, mas também à acessibilidade, localização e adequação cultural (PANSIERI, 2012, p. 43).
Com efeito, após a manifestação do STF em Reclamações Constitucionais, diversos casos de conflitos fundiários passaram a ser analisados sob esse enfoque, com a determinação de instituição de Comissão de Conflitos Fundiários e inspeções judiciais, a revelar que a jurisprudência criada em situação de excepcionalidade sedimentou-se de forma duradoura com aplicação perene do método integrativo, sobretudo com a posterior regulamentação pelo CNJ.
Essa forma de resolução de conflitos revela-se como uma política promissora na efetiva implementação do direito à moradia.
Referência Bibliográfica
ARAUJO, Alexandra Fuchs de. Controle judicial de políticas públicas de moradia para baixa renda: uma proposta metodológica. 2021. Tese (Doutorado em Direito do Estado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.
GARGARELLA, Roberto. As teorias da Justiça depois de Rawls: Um breve manual de filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
PANSIERI, Flávio. Eficácia e vinculação dos direitos sociais: reflexões a partir do direito à moradia. Editora Saraiva. São Paulo: 2012.
SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SOUZA, Fernando Garcia. Judicialização de direitos sociais: o Judiciário como articulador interinstitucional no cumprimento de sentenças coletivas. Dissertação de mestrado sob Orientação da Professora Dra. Susana Henriques da Costa. São Paulo, Universidade de Direito da USP, 2016.
VALLE, Vanice Regina Lírio; DIAS, Paula do Espírito Santo de Oliveira. Indeterminação dos direitos sociais e os desafios à efetividade: uma visão empírica. Revista Brasileira de Direito Administrativo e Constitucional. Belo Horizonte: ano 18, n. 73, jul./set. 2018a.
*Assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal. Mestranda em Direito, Regulação e Políticas Públicas na UnB
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