Parlamentarização do presidencialismo
Governabilidade do presidente
Tatyanne Araujo*
No estudo de uma possível parlamentarização do presidencialismo no Brasil, se faz essencial compreender a evolução desses sistemas no cenário brasileiro, com a abordagem de pontos históricos acerca do parlamentarismo e presidencialismo. Igualmente, aprofundar pontos do desenvolvimento do presidencialismo no Brasil e, por fim, levantar uma reflexão quanto à ideia de estarmos vivendo uma parlamentarização do presidencialismo ao reconhecer e detectar como o Parlamento vem influenciando a tomada de decisões do Executivo.
Parlamentarismo e presidencialismo: caminhos do sistema brasileiro
O sistema de governo de uma país indica o modo como os Poderes Executivo e Legislativo se relacionam no exercício de suas atribuições. Diante dessa forma de relacionamento, a doutrina classifica de maneira clássica os sistemas de governo em parlamentarismo e presidencialismo.
Observa-se como caraterísticas principais do parlamentarismo um Executivo dual, com o exercício das funções de chefe de Estado e chefe de Governo por personalidades diversas, bem como a separação de Poderes se demonstra flexível, em vista de uma maior dependência do Executivo com o Legislativo e com a necessidade de o governo rotineiramente justificar suas decisões ao Parlamento, como um dever de prestação de contas para verificar a atuação do governante, o accountability [1].
No presidencialismo, seus principais aspectos, em contraponto ao parlamentarismo, se firmam num Poder Executivo uno, com a separação de Poderes mais sólida, bem como a ausência da dependência ou submissão na atuação do governante com o Legislativo presente no sistema parlamentarista.
O sistema de governo presidencialista marca a história brasileira por ter sido adotado quase que de forma ininterrupta desde a Proclamação da República, em 1889, até a atual Constituição Federal de 1988, embora o parlamentarismo tenha-se feito presente em dois pontos pontuais e peculiares da história brasileira.
A Constituição de 1988 logo em seu artigo 2º é expressa quanto à adoção do princípio da separação dos Poderes quando diz que "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". Além disso, no artigo 76, da Carta Magna, o texto prevê que "O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República […]", o que reforça o caráter uno do Executivo e o sistema presidencialista intencionado pela Constituição.
Sobre a separação de Poderes e o presidencialismo, especificamente, o governante não está totalmente vinculado ao Legislativo, mas precisa manter relações harmônicas e diálogos institucionais para que consiga exercer sua governabilidade.
Presidencialismo de coalização brasileiro como meio de governabilidadeA CF/88 tem como uma de suas características um maior direcionamento de atribuições ao presidente da República, o que fora herdado do período do regime militar, momento que houve um empenho em elevar os poderes legislativos do Executivo, perpetuando-se na atual Constituição, proporcionando ao Presidente um maior poder de agenda com o Congresso.
No estudo desse poder de legislar conferido ao presidente, Guimarães [2] apresenta dados relevantes sobre esse atuar:
"[…]é possível identificar que, das 6.285 proposições convertidas em norma jurídica entre 1988 e 2018, 4.167, ou aproximadamente 66,3% foram de iniciativa do Presidente da República. Outras 1.776 proposições (28,2%) foram de autoria do Poder Legislativo, e 342 (5,5%) foram de autoria do Poder Judiciário, Ministério Público da União, Defensoria Pública da União, Tribunal de Contas da União, por iniciativa popular, entre outros. Nota-se, entretanto, que a diferença no número de proposições aprovadas, do Poder Executivo e do Poder Legislativo, vem caindo gradativamente a cada período presidencial."
Nesse sentido, já nos mandatos de Dilma Rousseff e Michel Temer (entre 2015 e 2018), o número de proposições convertidas em lei, originárias do Poder Legislativo (52,2%) ultrapassou, pela primeira vez na série histórica, o número de proposições originárias do Poder Executivo (44,8%).
Ainda, ao mesmo tempo que nossa Carta Magna confere maiores atribuições ao Presidente da República, outras atribuições tão importantes quanto foram atribuídas ao Parlamento brasileiro, que visam equilibrar a atuação do Executivo, a qual não pode ser desenfreada e livre de controle, com destaque para o poder de rejeitar o veto do presidente sobre um projeto de lei, como professa o artigo 66, §4º. Menciona-se também a possibilidade de convocação de ministro de Estado para prestar informações pessoalmente na Câmara ou no Senado, conforme artigo 50, CF/88.
Além disso, ao parlamento, fora concedido o poder de admitir acusação contra o presidente da República, que é atribuição da Câmara dos Deputados. Após uma eventual admissão, tratando-se de crime comum, a acusação será submetida ao julgamento do STF e, sendo crime de responsabilidade, ao Senado Federal, conforme dispõe o artigo 86, CF/88.
São atribuições de extrema relevância, especialmente sobre o crime de responsabilidade, em que, um julgamento desse quesito, comunica momentos de crise, tendo em vista sua excepcionalidade com as consequências para o presidente julgado e para a estabilidade democrática.
O Brasil já passou por dois episódios de impeachment. O primeiro com Fernando Collor, em 1992, e o segundo no ano de 2016, com a presidente Dilma Rousseff. Embora os contextos de Collor e Dilma tenham sido diversos, alguns pontos em comum marcam ambos: a baixa popularidade e a relação com o parlamento fragilizada.
Essa relação frágil com o parlamento reforça a notável teoria sobre o presidencialismo de coalizão de Sérgio Abranches. O presidencialismo de coalizão parte da ideia de diálogo e acordos entre os Poderes Legislativo e Executivo, o que não significa que essa relação seja firmada em clientelismo ou corrupção.
O referido modelo ganhou maior evidência com a crise do governo da presidente Dilma Rousseff, sendo visto de maneira negativa por muitos, com associação a corrupção. Mas essa forma de praticar o presidencialismo não pode ser responsabilizada por si só pelos momentos de crise. Se o sistema de governo fosse o parlamentarismo e os outros fatores, como a quantidade de partidos existentes na esfera brasileira, continuassem os mesmos, não faria grande diferença no contexto político de coalizões [3].
Ao mesmo tempo que o presidente precisa estar alinhado com o Legislativo, este igualmente tem interesse em uma ter relações firmes com o Executivo para alcançar seus fins políticos. Como afirma Silva [4], "nenhum dos poderes atribuídos ao presidente da República é suficiente para ignorar o Congresso, nem mesmo o poder de editar medidas provisórias com força de lei".
Nesse sentido, Abranches [5] acredita que:
"A capacidade de governança do presidente depende do apoio parlamentar para poder transformar em leis as suas principais escolhas de políticas públicas. Os congressistas dependem das decisões de gasto do Executivo, para atender às demandas de seu eleitorado."
Poderia se dizer também que, haveria uma certa influência parlamentarista no presidencialismo de coalizão, tendo em vista que, o presidente mesmo sendo eleito pelo voto popular, estaria, em virtude do multipartidarismo brasileiro, obrigado a aderir a práticas derivadas do parlamentarismo com coalizões que estruturem o governo no Poder Legislativo, considerando que apenas o partido do representante do Executivo não seria suficiente na garantia da governabilidade [6].
Desígnios da ascensão do parlamento brasileiro na governabilidade do presidenteEssa tendência de introduzir mecanismos parlamentaristas em governos com sistema presidencialista tem sido denominada de parlamentarização do presidencialismo, é o que entende Valadés [7]. Para o autor há o fenômeno da parlamentarização quando se mantém a estrutura presidencialista, mas ao mesmo tempo acrescentam-se institutos de controle característicos do sistema parlamentarista.
No caso da esfera brasileira, o poder do presidente na esfera legislativa decaiu com o tempo analisando o início da vigência da Constituição de 1988 até o momento atual. Ainda mais nos últimos anos, com o mais recente impeachment, o qual gerou uma instabilidade democrática. Na ocasião, o parlamento, seguindo a vontade ocasional das massas, conseguiu angariar maior aprovação popular, elevando a confiança na instituição Congresso Nacional, que sempre fora alvo de críticas.
A desconfiança social em torno da presidência da República e uma a crise política instalada, foi possível assistir o ápice da polarização da política no Brasil nas eleições de 2018 e 2022.
No caso das eleições de 2018, a polarização concentrada em um candidato que tinha o apoio da ex-presidente Dilma e do também ex-presidente Lula, Fernando Haddad, contra o candidato, outsider, de direita, Jair Bolsonaro, que esteou sua campanha política com promessas de fim da corrupção e de atuação independente. Em campanha, Jair Bolsonaro, expressou sua insatisfação com os acordos partidários realizados por governos anteriores, em especial, teceu duras críticas ao grupo político conhecido como "centrão". Na época, ele disse que o centrão era "o que há de pior no Brasil" [8].
Bolsonaro fora eleito em 2018 para presidente da República com 55,13% dos votos, contra 44,87% de Fernando Haddad. Durante o exercício de seu mandato, o qual foi marcado pela situação atípica da pandemia de Covid-19, Bolsonaro logo percebeu que não seria possível manter seu discurso de plena independência, pois não era possível governar de maneira isolada, distante do parlamento e, logo agiu de maneira contrária à sua fala sobre o centrão, fazendo alianças pertinentes com o grupo, reforçando a ideia de diálogo da tese do presidencialismo de coalizão.
Seu governo marcou momentos de crise e tensão democrática, mas o destaque que se propõe aqui é, adotar um discurso de plena independência não é viável ou isolamento político.
Na recente eleição de 2022, Bolsonaro candidatou-se à reeleição, dessa vez com ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, este então obteve êxito. A polarização mais uma vez ficou evidente nas ruas, nos discursos, na expressão popular, refletindo no número das urnas. Lula venceu o pleito com 50,90% dos votos, contra 49,10% dos votos de Bolsonaro, demonstrando um país dividido.
No quesito da relação com o Parlamento, Lula optou por desde o início estabelecer relações institucionais com o Legislativo. Em tese, o mesmo Centrão que participou da gestão bolsonarista, hoje se faz presente notoriamente na gestão de Lula. Logo, independente da compreensão sobre o mérito e ideologia dessa política polarizada, o que se verifica é que não importa qual a ideologia do Presidente em exercício, para uma efetiva e possível governabilidade, a relação e interação com o Legislativo deverá existir, faz parte do jogo da política.
Diante desse contexto, há na Câmara dos Deputados um grupo de trabalho que discute sobre a adoção de um sistema semipresidencialista. Em outubro de 2022, o grupo chegou à conclusão de recomendação de adoção do referido sistema a partir de 2030, onde a mudança dependeria da aprovação de um plebiscito e teria como aspectos a permanência da eleição direta do presidente da República, incluindo a existência de um primeiro-ministro que seria indicado pelo presidente eleito e que exerceria o cargo enquanto conservasse a confiança da maioria do Parlamento e um Executivo dual, com o presidente exercendo a chefia de Estado e o primeiro-ministro a chefia do governo [9].
Há argumentos a serem ouvidos sobre esse novo sistema, porém, o que se observa é que esse debate ganhou maior visibilidade com as eleições presidenciais no ano de 2022 e é preciso cuidado para que esse incentivar esse sistema não seja apenas mais uma reação contra o resultado das eleições.
De toda forma, presenciar como esse assunto tornou-se notável é mais uma prova inegável da força e protagonismo que o Poder Legislativo vem consolidando. Mesmo que o sistema semipresidencialista não seja adotado no Brasil, pode-se dizer que vivemos um cenário de parlamentarizarão do presidencialismo, o que poderá ser ampliado ou não, a depender das coalizões acordadas entre presidente da República e Congresso Nacional.
Conclusão
Esse artigo buscou demonstrar os caminhos do sistema presidencialista no Brasil, desde a abordagem histórica até o momento atual para compreender da melhor maneira como o sistema se consolidou, bem como a trajetória de ascensão do Poder Legislativo para identificar uma parlamentarização do presidencialismo.
Chega-se à conclusão de que a ideia de parlamentarização se demonstra por esse fortalecimento do Poder Legislativo e a necessidade de o Executivo manter uma relação estável, pois, na política brasileira, é quase impossível governar de maneira individual. O diálogo, a busca pelo equilíbrio entre os Poderes se fazem essencial para a estabilidade democrática e para se alcançar uma governabilidade viável.
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Referências
ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de direito constitucional. 4 – ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Grupo de trabalho da Câmara recomenda sistema semipresidencialista no Brasil a partir de 2030. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/914394-grupo-de-trabalho-da-camara-recomenda-sistema-semipresidencialista-no-brasil-a-partir-de-2030/. Acesso em 29 de jul. de 2023.
GUIMARÃES, Luís Gustavo Faria. O presidencialismo de coalizão no Brasil. – 1. ed. – São Paulo: Blucher Open Access, 2020.
HORBACH, Carlos Bastide. O parlamentarismo no Império do Brasil (I): Origens e funcionamento. Brasília a. 43 nº 172 out./dez. 2006. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/92827/Horbach%20Carlos.pdf. Acesso em: 10 de jun. de 2023.
PODER 360. Políticos ironizam Bolsonaro por falas contra o Centrão em 2018: "O que há de pior". Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/politicos-ironizam-bolsonaro-por-falas-contra-o-centrao-em-2018-o-que-ha-de-pior/. Acesso em: 28 de jul. de 2023.
SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. 1. ed., 1. reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021.
VALADÉS, Diego. La parlamentarización de los sistemas presidenciales. 2º ed., Ciudad de México; Unam, 2007. Disponível em: http://ru.juridicas.unam.mx/xmlui/handle/123456789/11408. Acesso em: 15 de jun. de 2023.
[1] BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de direito constitucional. 4 – ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 394.
[2] GUIMARÃES, Luís Gustavo Faria. O presidencialismo de coalizão no Brasil. – 1. ed. – São Paulo: Blucher Open Access, 2020. p. 107
[3] SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. 1. ed., 1. reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021. p. 480.
[4] Ibidem p. 481.
[5] ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 89.
[6] GUIMARÃES, Luís Gustavo Faria. O presidencialismo de coalizão no Brasil. – 1. ed. – São Paulo: Blucher Open Access, 2020. p. 141.
[7] VALADÉS, Diego. La parlamentarización de los sistemas presidenciales. 2º ed., Ciudad de México: UNAN, 2011. p. 5.
[8] PODER 360. Políticos ironizam Bolsonaro por falas contra o Centrão em 2018: "O que há de pior". Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/politicos-ironizam-bolsonaro-por-falas-contra-o-centrao-em-2018-o-que-ha-de-pior/. Acesso em: 28 de jul. de 2023.
[9] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Grupo de trabalho da Câmara recomenda sistema semipresidencialista no Brasil a partir de 2030. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/914394-grupo-de-trabalho-da-camara-recomenda-sistema-semipresidencialista-no-brasil-a-partir-de-2030/. Acesso em 29 de jul. de 2023.
Artigo publicado originalmente em Conjur, 11 out. 2023.
*Tatyanne Araujo é doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), pós-graduada em Direito Constitucional, advogada e pesquisadora.
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