Por quem marcham os prefeitos em 2024?
Coletivo Legis-Ativo [*] e Ana Cláudia Farranha [**]
Ocorre nesta semana a “Marcha a Brasília em Defesa dos Municípios”, também conhecida como Marcha dos Prefeitos. O evento é organizado pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM). O primeiro desses eventos foi organizado em 1998 e neste ano de 2024 chega à sua 25ª edição. O site da organização aponta uma série de conquistas ao longo da sua existência, dentre elas, podem ser citados: aumento de cerca de 10% no FPM ( 1999); criação da taxa de iluminação e concretização da Emenda Constitucional 39/2002; acréscimo de 50% em recursos para a saúde e a criação do Programa Nacional de Transporte Escolar (Pnate); 1% no mês de dezembro do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), consolidado pela Emenda Constitucional 55/2007; 100% da arrecadação do Imposto Territorial Rural (ITR) para os municípios e a consolidação do Comitê Gestor do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (CGITR); prorrogação do prazo para implementação da nova Lei de Licitações, a Lei 14.133/2021 ( CNM, 2024).
Observa-se que são conquistas importantes que se fazem repercutir no dia a dia das pessoas que vivem no município. Sendo assim, a breve reflexão que esse artigo propõe é compreender, para além de grandes eventos em que são anunciadas medidas importantes, quais desafios as pessoas residentes nos municípios brasileiros enfrentam e como tais desafios podem ser incorporados à gestão das políticas públicas?
Na abordagem sobre os temas relativos à vida nas cidades (municípios) ou poder local, uma obra muito citado e conhecido na ciência política é o Coronelismo, Enxada e Voto (1948), escrito por Vitor Nunes Leal, ex-ministro da Casa Civil do governo Juscelino Kubitschek e ministro do Supremo Tribunal Federal cassado pela ditatura militar, em que o autor analisa as relações de subserviência dos municípios e da União.
O argumento principal dessa obra foi demonstrar como as relações de clientelismo evidenciadas no sistema eleitoral da Primeira República faziam com que a autonomia do poder local deixasse de existir, criando uma dependência das políticas da União e tirando do líder municipal a possibilidade de sair do controle político dos coronéis da República Velha.
É certo que o arranjo constitucional de 1988 garantiu mais autonomia das lideranças municipais, protegendo, principalmente, as pessoas que vivem nos municípios da dívida de favores políticos em relação ao poder central. Entretanto, apesar de maior autonomia – e a Marcha assinala como muitos passos foram dados em favor dessa autonomia -, os desafios de construir políticas públicas em um contexto que se torna mais complexo para esses municípios parecem ser o tema da vez e da hora.
Que desafios seriam esses? Segundo dados do último Censo ( 2022), a população residente no Brasil em 2022 era de 203.080.756 pessoas, distribuídas em 5.568 municípios. Dessa população, 104.548.325 são mulheres (51,5%) e 98.532.431 (48,5%) são homens. Esses números assinalam que as mulheres são a maioria da população brasileira. Na autodeclaração racial, 88.252.121 pessoas se declaram brancas (43,5%); 20.656.458, se declaram pretas (10,2%); 92.083.286 se declaram pardas (45,3%); 850.130 (0,4%) se declaram amarelas e 1.227.642 (0,6%) se declaram indígenas. Somados, pretos e pardos correspondem a maior parte da população brasileira. (IBGE, 2022).
Do ponto de vista da alfabetização, os números apurados pelo Censo 2022 são: 151.547.694 pessoas alfabetizadas, 93% da população, e 11.403.801, 7% da população, são não alfabetizados. E sobre os domicílios: 35,31% deles não estão conectados à rede de esgoto; 16,12% não são abastecidos por rede geral de água; 1,89% não têm banheiro de uso exclusivo e 8,29% não têm coleta de lixo, assinalando que a universalidade desses serviços ainda não foi atingida.
Esses indicadores ressaltam situações que desafiam a pensar mais e melhores políticas para mulheres e pessoas negras (a soma de pessoas pretas e pardas) e medidas de acesso universalizados dos domicílios a serviços de esgoto, água e coleta de lixo e educação. E essas políticas têm lugar nos municípios. Muitas delas estão articuladas em estruturas de governanças com responsabilidades, competências e papéis divididos com a União e colocam como temas fundamentais as questões da equidade e da sustentabilidade.
Assim, o desafio da marcha e dos debates que essa fomenta referem-se à implementação de políticas públicas no âmbito local capazes de alterar alguns dos indicadores apontados nessa reflexão. E, para isso, em minha opinião, a chave reside no fortalecimento das capacidades institucionais, com a perspectiva de planejamento governamental (LIMA, LUI, DIAS, PAPI, DEMARCO. 2020) , com participação e inclusão dos atores sociais. Respondendo minha pergunta inicial: os prefeitos devem marchar por aqueles que necessitam efetivar as garantias e direitos que lhes são assegurados.
[*] Coletivo Legis-Ativo. Projeto do Movimento Voto Consciente que reúne voluntariamente 20 cientistas políticos, em paridade absoluta de gênero espalhados por todas as regiões do país. As ações do coletivo envolvem a produção de textos analíticos e a apresentação, em parceria com organizações diversas, de podcasts. Email: legis.ativo.mvc@gmail.com
[**] Ana Cláudia Farranha. Professora da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação Direito, Regulação e Políticas Públicas (PMPD) da Universidade de Brasília.
Publicado originalmente em Congresso em Foco, 22.05.2024.
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