Varley Pires da Mata [1]

Introdução

O uso medicinal da Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, tem sido objeto de intensos debates, envolvendo questões jurídicas, regulatórias e de saúde pública. O avanço das pesquisas científicas comprova a eficácia terapêutica dos canabinoides no tratamento de diversas doenças, com destaque para o canabidiol (CBD), um dos principais compostos extraídos da Cannabis sativa, frequentemente utilizado na forma de óleo medicinal. Contudo, a legislação brasileira ainda apresenta entraves significativos, especialmente quanto ao cultivo da planta e à produção nacional desses medicamentos.

A regulamentação do uso medicinal da Cannabis no Brasil tem avançado gradativamente, com normativos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) que permitem a importação do fármaco e de seus insumos. No entanto, a ausência de um marco regulatório específico para o cultivo e a produção nacional leva os pacientes à judicialização do tema, devido ao alto custo da importação. Em geral, o Poder Judiciário tem concedido autorizações individuais e para associações voltadas ao cultivo e à produção medicinal.

A controvérsia culminou no julgamento do Incidente de Assunção de Competência (IAC) nº 16 pelo STJ, que determinou a regulamentação da matéria pela ANVISA e pela União. O presente artigo examina o IAC como mecanismo processual, a regulamentação da cannabis medicinal no Brasil e o como se deu a citada decisão do STJ.

O conceito, a natureza e os requisitos do Incidente de Assunção de Competência (IAC)

Inicialmente, vale tecer comentários sobre o IAC, especialmente porque, na prática forense cotidiana, os operadores do direito estão mais familiarizados com peças e mecanismos processuais tradicionais, como petição inicial, recurso de apelação, recurso especial e recurso extraordinário.

O IAC encontra previsão no artigo 947 do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), de acordo com o caput do referido dispositivo legal:

"Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos".

De acordo com FUX (2023, p. 1047), a assunção de competência consubstancia-se em incidente processual destinado a assegurar a segurança jurídica, conferindo previsibilidade e isonomia às decisões judiciais. O acórdão proferido em assunção de competência vincula todos os juízes e órgãos fracionários.

O instituto difere do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) e dos Recursos Repetitivos porque seu cabimento não depende da multiplicidade de processos, mas sim da necessidade de prevenção de controvérsias jurídicas relevantes e de impacto social significativo.

Em termos conceituais, o IAC é um mecanismo processual que permite a concentração da competência decisória de um tribunal para que uma questão jurídica relevante e inédita, sem caráter repetitivo, seja julgada por seu órgão colegiado, geralmente o plenário ou a seção especializada.

Conforme ensina FUX (2023, p. 1.048), incumbe ao relator propor, de ofício ou após requerimento da parte, do Ministério Público ou da Defensoria Pública, que o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária seja julgado pelo órgão colegiado indicado pelo respectivo regimento interno.

Para que seja admitida a instauração do IAC, o legislador estabeleceu três requisitos cumulativos, que devem estar presentes no caso concreto: relevante questão de direito, grande repercussão social e ausência de repetição em múltiplos processos.

BUENO (2024, p. 771) afirma que o julgamento no IAC também deve observar o julgamento do caso concreto, e não, apenas, a fixação ou enunciação da tese relativa à relevante questão de direito.

Ademais, na perspectiva do microssistema dos precedentes qualificados, o IAC fortalece a lógica do art. 926 do CPC/2015, que impõe aos tribunais o dever de manter sua jurisprudência estável, íntegra e coerente. Ao permitir que temas sensíveis e inéditos sejam julgados com amplitude e profundidade, o IAC contribui para a formação de precedentes paradigmáticos e reforça a previsibilidade do ordenamento jurídico, proporcionando segurança para os jurisdicionados, para a Administração Pública e para a sociedade em geral.

Nesse contexto, o STJ instaurou o IAC nº 16, julgado em novembro de 2024, ainda pendente do trânsito em julgado, cujo objeto de análise consistiu na possibilidade de concessão de autorização sanitária para importação e cultivo de variedades de cannabis que, embora produzam Tetrahidrocanabinol (THC) em baixas concentrações, geram altos índices de Canabidiol (CBD) ou de outros Canabinoides, e podem ser utilizadas para a produção de medicamentos e demais subprodutos para usos exclusivamente medicinais, farmacêuticos ou industriais.

Esse julgamento, que será melhor analisado adiante, representou um marco na relação entre o Poder Judiciário e a regulação sanitária, trazendo impactos significativos na definição dos limites da discricionariedade técnica da ANVISA e na garantia do acesso à saúde para pacientes que necessitam desses tratamentos.

A regulação do uso medicinal de cannabis sativa

O Brasil possui uma legislação rigorosa relacionada à Cannabis, especialmente devido ao seu enquadramento como substância entorpecente pela Lei nº 11.343/2006, conhecida como Lei de Drogas, que criminaliza o cultivo, a produção e a comercialização da planta.

Tecnicamente, o art. 66 da Lei de Drogas determina que “denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998”. É nessa portaria, que foi editada pelo Secretário de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, que consta a Cannabis e o Tetraidrocanabinol (THC) como substâncias entorpecentes.

Contudo, avanços científicos e a comprovação das propriedades terapêuticas de substâncias extraídas da Cannabis, especialmente o Canabidiol, têm exigido uma reflexão mais cuidadosa sobre o tema. SADDI (2021, p. 29) afirma que o uso terapêutico da Cannabis é relatado pela literatura médica há milênios, e que as propriedades encontradas nos canabinoides – de uma forma ou de outra – podem ser utilizadas no tratamento de uma série de doenças.

A ANVISA, como órgão regulador responsável por estabelecer diretrizes para o setor, implementou diversas Resoluções da Diretoria Colegiada (RDCs) visando disciplinar o acesso e a comercialização de produtos à base de Cannabis para fins medicinais (SANTOS, 2020).

O primeiro marco regulatório relevante foi a RDC nº 17/2015, que autorizou a importação excepcional de produtos à base de Canabidiol por pessoas físicas, mediante prescrição médica e laudo técnico que comprovasse a necessidade do tratamento. Essa resolução representou um avanço inicial, ao viabilizar o acesso dos pacientes a medicamentos derivados da Cannabis, ainda que com altos custos e entraves burocráticos decorrentes da obrigatoriedade da importação.

Posteriormente, a RDC nº 327/2019 trouxe avanços significativos ao estabelecer critérios para a fabricação, importação, comercialização e dispensação de produtos à base de Cannabis em território nacional. Essa resolução permitiu a produção interna de medicamentos, desde que cumpridos critérios rigorosos de controle sanitário. Contudo, manteve a vedação expressa ao cultivo da planta no Brasil para fins medicinais, farmacêuticos ou industriais, o que ainda gerou a necessidade da importação de matéria-prima, que dificulta a ampliação do acesso para pacientes que necessitam dessas terapias.

Outro avanço regulatório relevante ocorreu com a RDC nº 335/2020, que estabeleceu critérios e procedimentos para a importação, diretamente por pessoa física, de produtos derivados de Cannabis para uso próprio, mediante prescrição médica. Essa norma teve o objetivo de simplificar e tornar mais acessível o procedimento de obtenção desses medicamentos, mas ainda não solucionou a limitação gerada pela necessidade de importação de produtos e derivados.

Mais recentemente, a RDC nº 660/2022 atualizou os procedimentos para importação excepcional de produtos à base de Cannabis, reafirmando a necessidade de prescrição médica e ampliando a flexibilização dos trâmites administrativos para facilitar o acesso aos medicamentos pelos pacientes que dependem desse tratamento.

Apesar dos normativos da ANVISA, a questão do cultivo da Cannabis para fins medicinais no Brasil ainda permanece sem regulamentação, gerando insegurança jurídica e dificultando a consolidação de uma cadeia produtiva nacional. Tal contexto reforça a crescente judicialização do tema, com decisões judiciais que, em alguns casos, autorizam o cultivo individual ou associativo para pacientes que comprovam necessidade terapêutica, com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde.

Reflexões sobre a decisão do STJ no IAC n. 16

Em maio de 2020, a empresa DNA SOLUÇÕES EM BIOTECNOLOGIA ingressou com ação judicial contra a União e a ANVISA, na Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de Curitiba - PR, com objetivo de obter autorização para importar sementes de Cannabis sativa, para realizar o plantio e a comercialização para fins exclusivamente industriais e farmacêuticos.

Na sentença, o juízo de primeiro grau julgou improcedente sob fundamento, em resumo, de que uma ampla autorização para exploração industrial da Cannabis sativa é matéria de natureza eminentemente política, que ficaria, portanto, na dependência de deliberações dos Poderes Legislativo e Executivo.

No segundo grau, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região manteve a sentença, conforme a seguinte ementa do julgado:

 ADMINISTRATIVO. AUTORIZAÇÃO PARA EXPLORAÇÃO INDUSTRIAL DE ESPÉCIE DA CANNABIS SATIVA. INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO. 1. A ampla autorização para importação de sementes, plantio, comercialização e exploração industrial da Cannabis sativa, ainda que somente uma de suas espécies e para fins exclusivamente industriais e farmacêuticos, é matéria de natureza eminentemente política, que depende de deliberações dos Poderes Legislativo e Executivo, não cabendo ao Poder Judiciário intervir nessa seara, para atender ao interesse de uma ou outra empresa. 2. A pretensão sub judice - que envolve a exploração econômica da substância em escala industrial (não artesanal) e a implementação de mecanismos de controle de produção e de destinação muito mais complexos - não se assemelha àqueles casos em que é permitida, pontualmente, a importação de medicamentos à base de CBD e THC e/ou o cultivo da planta, para fins de elaboração de um específico fármaco para pacientes nominalmente identificados. E, mesmo nesses casos, a atuação judicial deve se pautar pelo princípio da intervenção subsidiária e excepcional (ou mínima) sobre as atividades econômicas sujeitas à regulamentação estatal.

Em setembro de 2022, os autos chegaram ao STJ, por meio do Recurso Especial n. 2.024.250, sob relatoria da Ministra Regina Helena. A Ministra relatora determinou vista dos autos ao Ministério Público Federal (MPF).

O MPF, por meio de parecer da Subprocuradora-Geral da República, Dra. Maria Iraneide Olinda Santoro Facchini, manifestou-se pelo desprovimento do recurso especial, sob argumento de que a autorização para o cultivo e exploração industrial da Cannabis sativa ultrapassa o escopo da atuação jurisdicional, sendo uma questão de competência exclusiva dos Poderes Legislativo e Executivo. Além disso, acrescentou que a legislação proíbe expressamente o cultivo da planta, salvo exceções rigorosamente controladas pela ANVISA, e que já existe um procedimento administrativo para a importação de medicamentos à base de canabinoides, garantindo segurança e controle na distribuição dessas substâncias.

O Parquet também diferencia o caso de outras decisões judiciais que concederam salvo-conduto para cultivo individual ou associativo da Cannabis para fins terapêuticos, ressaltando que a pretensão da empresa envolve exploração comercial em larga escala, o que exige regulamentação específica e fiscalização rigorosa.

Em seguida, a Ministra relatora submeteu proposta de admissão de Incidente de Assunção de Competência aos membros da Primeira Seção do STJ, para fins de delimitar a seguinte questão de direito controvertida:

“Definir a possibilidade de concessão de Autorização Sanitária para importação e cultivo de variedades de Cannabis que, embora produzam Tetrahidrocanabinol (THC) em baixas concentrações, geram altos índices de Canabidiol (CBD) ou de outros Canabinoides, e podem ser utilizadas para a produção de medicamentos e demais subprodutos para usos exclusivamente medicinais, farmacêuticos ou industriais, à luz da Lei n. 11.343/2006, da Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto n. 54.216/1964), da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas (Decreto n. 79.388/1977) e da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Decreto n. 154/1991)"

No voto da Ministra Regina Helena destacou-se que a orientação jurisprudencial das Turmas que integram a 3ª Seção do STJ, que trata de Direito Penal, é no sentido de autorizar o plantio de Cannabis por pessoas físicas para fins medicinais, de sorte a permitir a extração de substâncias necessárias à produção de medicamentos artesanais prescritos por profissionais de saúde, afastando, em consequência, a caracterização dos crimes previstos na Lei de Drogas.

Além disso, a Ministra afirmou que estavam presentes os requisitos para a instauração do IAC, pois a questão envolvia relevante questão de direito, grande repercussão social e ausência de multiplicidade de processos. No voto foi destacado o impacto na regulamentação sanitária e no direito à saúde, diante da falta de normatização sobre o cultivo e a produção de medicamentos derivados da Cannabis no Brasil. O IAC foi admitido por unanimidade pelos Ministros da Primeira Seção da Corte Superior.

Após realização de audiência pública, o ingresso e manifestações de diversas entidades como amicus curiae, em novembro de 2024, os Ministros da Primeira Seção, por unanimidade, deram parcial provimento ao recurso especial para autorizar a Recorrente a importar sementes, plantar, cultivar e comercializar cânhamo industrial (Hemp), variedade de Cannabis com teor de Tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%, para fins exclusivamente medicinais e industriais farmacêuticos, observada a regulamentação a ser editada pela ANVISA e pela União, no âmbito das respectivas atribuições, no prazo de 06 (seis) meses, contados da publicação do acórdão.

Em fevereiro de 2025, a União e a ANVISA opuseram embargos de declaração, buscando ampliar o prazo de 06 (seis) meses para regulamentação da matéria, sob o argumento de que o período estipulado seria excessivamente exíguo para a elaboração de normativos adequados, considerando a complexidade do tema e suas múltiplas implicações regulatórias. No entanto, os aclaratórios foram rejeitados pelos Ministros, mantendo-se o prazo originalmente fixado para a edição das normas regulatórias.

Embora o processo ainda não tenha transitado em julgado, o acórdão foi publicado em 19 de novembro de 2024, de modo que, em tese, o prazo para a regulamentação da matéria pela ANVISA se encerra em 19 de maio de 2025.

O julgamento do IAC nº 16 pelo STJ representa um marco jurídico relevante na discussão sobre o cultivo da Cannabis sativa para fins medicinais no Brasil. A decisão reforça a necessidade de garantir o direito à saúde, especialmente diante da persistente lacuna regulatória, ao mesmo tempo em que determina a regulamentação da matéria.

No entanto, a decisão também levanta reflexões sobre os limites da atuação judicial frente à competência técnica e à discricionaridade da ANVISA. O tribunal não invadiu diretamente a esfera regulatória da agência, mas determinou que a matéria fosse regulamentada, reconhecendo a urgência do tema e sua relevância social.

É possível que a controvérsia chegue ao Supremo Tribunal Federal, que poderá decidir sobre aspectos constitucionais, como a independência técnica da ANVISA na regulação do setor (art. 174, CF/1988), o direito à saúde da população (art. 6º, da CF/1988) e a separação entre os poderes (art. 60, §4º, III, CF/1988).

BARROSO (2002, p. 306) afirma que quanto às decisões das agências reguladoras informadas por critérios técnicos, o Poder Judiciário deverá agir com parcimônia, sob pena de se cair no domínio da incerteza e do subjetivismo.

De toda forma, a decisão sinaliza um avanço significativo na regulamentação da Cannabis medicinal no Brasil, com potencial para ampliar o acesso ao tratamento, especialmente para pacientes de baixa renda, contribuindo para a construção de um marco regulatório mais sólido e equitativo.

 Considerações finais

O julgamento do IAC nº 16 pelo STJ representa um marco na discussão sobre o cultivo e regulamentação da Cannabis para fins medicinais no Brasil. No entanto, a controvérsia pode chegar ao STF, que poderá analisar questões constitucionais, como a autonomia técnica da ANVISA, o direito à saúde e a separação de poderes.

Caso não haja recursos e reversão da decisão, a regulamentação da matéria pela ANVISA poderá proporcionar maior acessibilidade aos tratamentos, reduzir custos para pacientes e estabelecer um ambiente regulatório sólido e seguro para o desenvolvimento desse setor no Brasil.

Além disso, a decisão do STJ reforça o papel do Judiciário na proteção de direitos fundamentais, como o acesso à saúde, especialmente diante da inércia regulatória. A regulamentação adequada poderá não apenas garantir segurança jurídica para pacientes e empresas do setor, mas também fomentar pesquisas científicas e inovações terapêuticas, consolidando um modelo normativo que equilibre a necessidade de fiscalização com a ampliação do acesso aos tratamentos baseados em Cannabis medicinal. 

Referências

BARROSO, Luís Roberto. Agências Reguladoras. Constituição e transformações do Estado e Legitimidade Democrática. Revista De Direito Administrativo, 229, 2002.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 2.024.250, da 1ª Seção, Brasília, DF, 18 de novembro de 2024.

BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. 10.ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024.

FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.

SADDI, Luciana. Maconha: os diversos aspectos, da história ao uso. 1. ed. São Paulo: Blucher, 2021.

SANTOS, Marina Jacob Lopes da Silva. VASCONCELOS, Beto. Breve histórico da recente regulamentação da Cannabis para fins medicinais e científicos no Brasil. Disponível em www.migalhas.com.br/arquivos/2020/6/871B2BA84D0C8B_Brevehistoricodarecenteregulam.pdf. Acesso em 06/03/2025.

[1] Varley Pires da Mata é mestrando em Direito, Regulação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília e analista judiciário do Superior Tribunal de Justiça