Uma homenagem à Defensoria Pública
Ao julgar HC 879414/SP, STJ foi provocado para garantir a interpretação igualitária da lei
Paulo Victor de Carvalho Mendonça*
Em 11 de junho de 2019 transitou em julgado no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) um acórdão para confirmar a condenação da ré AMPP, presa em flagrante em 2018, a uma pena de 8 anos e 9 meses de reclusão pelo crime previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006.
Até aqui aparentemente nada fora da rotina da justiça criminal brasileira, considerando que o crime de tráfico é o principal assunto julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme o relatório estatístico da corte para 2023 disponível na sua página.
Mas o destaque do HC impetrado em dezembro de 2023 pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo consiste no fato de que a pena de 8 anos e 9 meses de reclusão e tem como base 1 grama de droga. Isso mesmo, apenas 1 grama de crack.
Mas como a Justiça do Estado de São Paulo chegou a essa dosimetria da pena considerando a apreensão de apenas 1 grama de droga. Essa é a pergunta jurídica. Foram dois pontos levados em consideração pela Justiça do Estado de São Paulo. Vejamos.
Primeiro, o juízo sentenciante na primeira fase da dosimetria aumentou a pena-base em 2 anos e meio (pela metade), por considerar, em que pese 1 grama, que “a natureza da droga apreendida (crack) revela um maior desvalor da conduta. Trata-se o crack de droga utilizada em ínfimas quantidades, com poder devastador para a saúde e uma das que mais facilmente causa dependência” (trecho extraído da sentença).
Depois, na segunda fase, por já ser usuária, nos termos do art. 28 da Lei 11. 343/2006, foi considerada reincidente pelo juízo sentenciante, que agravou a sua reprimenda em 1/6 da pena, somando, ao fim, 8 anos e 9 meses de reclusão. Interposto recurso de apelação, a sentença foi integralmente mantida pelo TJSP, com trânsito em julgado em 2019.
Mas como e por que o STJ reduziu a pena para 1 ano e 8 meses em regime aberto? A Justiça do Estado de São Paulo pensa tão diferente assim acerca da aplicação da mesma lei federal?
Inicialmente o relator afastou a exasperação da pena-base pela metade pois “a natureza da droga apreendida, isoladamente considerada, não constitui fundamento suficiente para majorar a pena-base” (trecho extraído da decisão no HC). O Ministro na decisão citou julgados recentes da 6ª Turma, a exemplo do REsp 1.976.266, oriundo do Estado de SP.
E com base nesse entendimento, concluiu na decisão que “nesse contexto, constato ilegalidade a ser sanada na pena-base fixada à paciente, devendo ser descartada a valoração negativa da natureza da droga apreendida, resultando em pena-base no mínimo legal de 5 anos de reclusão e 500 dias-multa”.
Restabelecida a pena-base em 5 anos, o relator prosseguiu no segundo ponto da defesa apresentada pela Defensoria Pública de SP, que era o indevido agravamento da pena pela reincidência em razão da prática da conduta prevista no art. 28 da Lei 11.343/2006.
Quanto ao ponto, o relator afirmou na decisão que o tribunal já “analisou o tema para considerar desproporcional o reconhecimento da reincidência por condenação anterior pelo delito do art. 28 da Lei n. 11.343/2006”. Para tanto, citou o REsp 1.672.654, julgado em 21.08.2018, também oriundo de São Paulo.
E assim fazendo, afastou os efeitos da reincidência decorrente de condenação anterior pelo crime de consumo e na terceira fase aplicou o redutor de pena na fração máxima, tendo em vista a pequena quantidade de drogas apreendidas – 1 grama de crack.
Isto é, afastada a entendida reincidência, o relator aplicou na terceira fase do cálculo a redução da pena na fração máxima de 2/3 justamente pela quantidade de droga apreendida, para chegar a pena final de “1 ano e 8 meses de reclusão, e 166 dias-multa, a ser cumprida em regime prisional inicialmente aberto, e substituir a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos” (trecho da decisão), nos termos da Súmula Vinculante 59 aprovada pelo STF.
Feito esse breve relato do caso, pode-se concluir juridicamente que enquanto a Justiça do Estado de São Paulo elevou a pena-base de 5 anos para 8 anos e 9 meses de reclusão em regime fechado pelo crime de tráfico considerando (i) natureza da droga na quantidade de 1 grama de crack e (ii) a entendida reincidência pelo crime de consumo, o STJ, por sua vez, afastou as duas premissas e concedeu ordem de ofício para reconhecer o redutor do tráfico privilegiado na última fase, de modo que a pena final ficou estabelecida em 1 ano e 8 meses de reclusão em regime aberto, substituída por duas restritivas de direito, com base na súmula vinculante 59 do STF.
Para o jurisdicionado, no caso, a paciente, deve ser difícil entender e, principalmente, sentir na privação da sua liberdade a abrupta divergência da dosimetria realizada pela Justiça Estadual e pela Justiça da União. É apenas uma a lei que regula a vida penal de todos desse país, independente da unidade da federação em que o crime foi cometido. É do nosso modelo federativo (art. 22, I, da CF). Não se mostra crível para a realidade cotidiana que a mesma lei, que deve ser federal também na sua interpretação, possa ser quase estadual a depender do estado da federação que é aplicada.
No presente HC, a Justiça da União, no caso o STJ, responsável federativo pela uniformização da interpretação, foi provocado para garantir a interpretação igualitária da lei para a paciente, exercendo uma espécie de função “corretiva da interpretação” que mudou não “só” a pena de mais de 8 anos para menos de 2 ano, mas o próprio destino do direito fundamental e humano à liberdade de uma pessoa.
A iniciativa da Defensoria Pública, de provocar o STJ em 2023 para reverter uma prisão que ocorreu em 2018, pôs fim a uma quase estadualização da interpretação da legislação federal.
Esse caso pode ser exemplificativo para justificar o crescente número de HC’s que são impetrados por ano no STJ. Segundo o relatório estatístico da corte, em 2023 a distribuição da classe HC foi maior que a própria classe REsp, quando o recurso é admitido na origem, atrás apenas da classe AREsp, que é a maior classe em distribuição e tramitação na corte.
E além da alta distribuição de HC’s, o que mais destaca são as altas taxas de ordens concedidas em relação ao crime de tráfico, na média de 44,6%. É o que demonstrou o estudo realizado e divulgado pelo ministro Sebastião Reis no I Congresso Sistema Brasileiro de Precedentes realizado em junho de 2023 no STJ em homenagem ao ministro Paulo de Tarso Vieira Sanseverino.
No ano de 2023, também segundo o relatório estatístico do tribunal, 3ª Seção do STJ julgou 13 temas sob a sistemática dos recursos repetitivos, um avanço histórico, mas ainda não suficiente para evitar certas lesões a direitos fundamentais, como no caso do presente HC da paciente que estava presa desde 2018.
Talvez com a presidência do ministro Rogério Schietti Cruz na Comissão Gestora de Precedentes do STJ, a identificação e a afetação de outros temas relevantes na seara penal possa ser o início de uma solução, sob o ponto de vista da gestão processual federativa, para evitar lesões irreparáveis ao direito fundamental à liberdade.
Sob o aspecto da irreparabilidade, é necessário relembrar que o sistema carcerário brasileiro já foi reconhecido pelo próprio STF como inconstitucional pela violação massiva dos direitos fundamentais dos presos quando do julgamento da já histórica ADPF 347, que começou em 2015 e terminou em 2023, sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.
Luiz Gama (1830-1882), advogado da liberdade, herói da pátria e patrono da abolição, que foi reconhecido pelo ministro Rogério Schietti Cruz como o primeiro defensor público do Brasil, atuando justamente no estado de São Paulo, perceberia diante desta triste realidade do HC que a sua “Luta pelo Direito no Brasil da Escravidão” (título da capa do novo livro do Bruno Rodrigues de Lima – Luiz Gama contra o Império) permanece viva no Brasil da República, mesmo após o dia 13 de maio de 1888.
Viva a escola Luiz Gama e viva a Defensoria Pública pelo seu dia nacional celebrado em 19 de maio, criado pela Lei Federal 10.448 de 2002.
*Paulo Victor de Carvalho Mendonça. Advogado e professor do IDP em Brasília. Mestre em Direito pela UnB. Ex-assessor e instrutor no STJ. Membro da Associação Brasiliense de Processo Civil (ABPC)
**Publicado originalmente em JOTA, 29/05/2024.
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