Uma investigação sobre a imunidade tributária das estatais prestadoras de serviços públicos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
Rodrigo de Macedo e Burgos e Ana Carolina Laferté
Introdução
A Constituição Federal veda aos entes políticos “instituir impostos sobre patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros” (art. 150, VI, a). Essa vedação se estende “às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo poder público e à empresa pública prestadora de serviço postal, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes”[1] (art. 150, § 2º); mas a vedação não se aplica “ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário” (art. 150, § 3º).
Já o artigo 173, § 2º, da Constituição, que trata da exploração de atividade econômica pelo Estado, dispõe que as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos ao setor privado.
Assim, quando o Estado explora atividades econômicas “em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário” (art. 150 § 3º) ou “regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados” (art. 150 § 3º), por meio de pessoa jurídica de direito privado (art. 173, § 1º, II e § 2º), afastada estaria, em tese, a imunidade recíproca.
Todavia, a jurisprudência do STF tem atribuído relevância, para fins de atribuição da imunidade, à prestação de serviços públicos essenciais, que por vezes é feita por pessoa jurídica de direito privado da qual o Estado participa.
A análise da jurisprudência denota dificuldade do Tribunal em distinguir com clareza as situações que clamam pela tributação da atividade econômica geradora de manifesta capacidade contributiva daquelas em que o incentivo à prestação de serviços públicos essenciais deve falar mais alto, garantindo-se a imunidade.
A jurisprudência do STF
A questão foi abordada nos seguintes temas de repercussão geral:
· Tema 115: Reconheceu imunidade para hospitais que prestam atendimentos exclusivamente através do SUS, sob a forma de sociedades de economia mista, com quase a totalidade do capital social pertencente ao ente público.
· Tema 412: Concedeu imunidade à INFRAERO, empresa pública prestadora de serviço público (infraestrutura aeroportuária).
· Tema 235: Estendeu a imunidade à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), incluindo serviços não monopolísticos.
· Tema 688: É constitucional a incidência do ISS sobre a prestação de serviços de registros públicos, cartorários e notariais.
· Tema 644: A imunidade tributária recíproca da ECT alcança o IPTU abrange todos os seus imóveis, independentemente do uso.
· Tema 402: Não incide o ICMS sobre o serviço de transporte de encomendas realizado pela ECT, tendo em vista a imunidade recíproca.
· Tema 437: Incide o IPTU sobre imóvel de pessoa jurídica de direito público cedido a pessoa jurídica de direito privado, devedora do tributo.
· Tema 385: A imunidade recíproca relativa ao IPTU não se estende a empresa privada arrendatária de imóvel público, quando exploradora de atividade econômica com fins lucrativos.
· Tema 508: Sociedade de economia mista, cuja participação acionária é negociada em Bolsas de Valores, voltada à remuneração do capital de seus controladores ou acionistas, não está abrangida pela regra de imunidade tributária.
· Tema 1140: As empresas públicas e as sociedades de economia mista delegatárias de serviços públicos essenciais, que não distribuam lucros a acionistas privados nem ofereçam risco ao equilíbrio concorrencial, são beneficiárias da imunidade tributária recíproca, independentemente de cobrança de tarifa como contraprestação do serviço.
A análise dos precedentes nos permite sistematizar algumas conclusões.
No que diz respeito às empresas públicas prestadoras de serviços públicos, ou sociedades de economia mista em que a quase totalidade das ações pertencem a um ente beneficiário da imunidade recíproca, não há divergências. Descarta-se a hipótese de exercício de atividade econômica em sentido estrito e a manifestação de capacidade contributiva, admitindo-se a extensão da imunidade (Temas 115, 412, 235, 644 e 402).
Nota-se nesses casos uma relevância no critério subjetivo: sendo a maioria ou a totalidade do capital da pessoa jurídica prestadora de serviço público pertencente ao ente beneficiário da imunidade, ela também será beneficiada, mesmo quanto às atividades acessórias que não necessariamente se inserem no conceito de serviço público, mas que de alguma forma orbitam o contexto no qual o serviço é prestado, sob o fundamento de que eventuais lucros reverterão em benefício do próprio serviço público.
A perspectiva sobre quem usufrui das vantagens da imunidade é reforçada por precedentes nos quais a Corte entendeu ser possível gravar de impostos reais o bem que, embora de propriedade de ente beneficiário da imunidade, esteja cedido a particular que explora atividade econômica (Temas 437 e 385).
Na mesma linha, o STF considerou, no Tema 1140, que o Metrô de São Paulo, sociedade de economia da qual o estado possui 97% do capital, faz jus à imunidade recíproca. Nesse caso, 3% do capital pertencia não a investidores privados, mas sim à Prefeitura de São Paulo (2,94%) e ao BNDESPAR e estatais paulistas (ambos atuam como longa manus dos entes controladores).
A Corte destacou a ausência de distribuição de lucros a acionistas privados como condição para o gozo da imunidade recíproca e desconsiderou a cobrança de tarifas, para fins do que dispõe o § 3º do art. 150 da Constituição. Apontou, ademais, inexistir risco concorrencial (serviço prestado com exclusividade) e não deu relevância à alegação de que o metrô concorreria com outros modais de transporte público municipal.
Entretanto, há aspectos da jurisprudência que se revelam indefinidos.
É o caso da extensão da imunidade a entidades prestadoras de serviços públicos em que não há preponderância do ente político na participação societária. Nesses casos, a remuneração do capital privado investido e a expectativa de lucro passam a ser um aspecto relevante da equação. Questiona-se, assim, se a imunidade estaria, na hipótese, favorecendo interesses eminentemente privados.
Em outro caso, ao julgar o Tema 688, a Corte afastou a imunidade recíproca dos serviços de registros públicos, cartórios e notariais, visto que essas atividades, por terem intuito lucrativo, não fazem jus à imunidade, conforme art. 150, § 3º, da Carta. Reafirmou-se o entendimento fixado na ADI 3.089, redator para acórdão Ministro Joaquim Barbosa, segundo o qual “a imunidade recíproca é uma garantia ou prerrogativa imediata de entidades políticas federativas, e não de particulares que executem, com inequívoco intuito lucrativo, serviços públicos mediante concessão ou delegação, devidamente remunerados”.
No Tema 508, sobre a imunidade de empresa de saneamento com participação estatal e privada equivalentes, a Corte ponderou entre beneficiar o serviço público essencial prestado pela companhia ou tributar exploração de atividade econômica geradora de lucros aos acionistas, característica que, à luz dos debates ocorridos na Corte, se evidenciava pela bem-sucedida abertura de capital no Brasil e no exterior.
Firmou-se, então, a tese segundo a qual sociedade de economia mista com ações negociadas em mercado e voltada à remuneração do capital de seus acionistas não faz jus à imunidade tributária. Entretanto, as Turmas do STF ainda divergem sobre o tema.
A Primeira Turma reconhece a imunidade de sociedade de economia mista com relevante participação privada: RE 1.313.502/AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 02/07/2021; RE 1.313.229/AgR, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJe 25/08/2023. Em sentido oposto, a Segunda Turma entende pela aplicação da tese do Tema 508 à hipótese: RE 1.433.522/AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 30/07/2024.
Portanto, o debate demanda amadurecimento no STF.
Atualmente, pelo menos três casos envolvendo a questão aguardam para serem pautados no Plenário: RE 829.221-AgR, que discute incidência de IPTU sobre imóvel de sociedade de economia mista concessionária de energia elétrica e no qual foram opostos embargos de divergência contra acórdão da Primeira Turma que garantiu a imunidade; ARE 1.289.782, que discute a imunidade em favor de sociedade de economia mista cujo objeto social é a construção de moradias para famílias (Tema 1122 da Repercussão Geral); RE 1.479.602, que discute se o arrendamento de imóvel da União para concessionária de serviço público de transporte ferroviário afasta a imunidade tributária, com a consequente incidência de IPTU sobre o imóvel afetado ao serviço (Tema 1297 da Repercussão Geral).
Conclusão
A extensão da imunidade recíproca às concessionárias de serviços públicos ainda gera divergências no STF.
A pesquisa mostrou que as divergências sobressaem quando se analisa a aplicação da imunidade às estatais prestadoras de serviços públicos cuja composição acionária pertença, de forma relevante, a agentes privados.
Nessas hipóteses, ora a Corte entende que os serviços públicos de titularidade do estado devem ser agraciados com a benesse, embora haja participação privada, ora entende que a imunidade recíproca não deve favorecer agentes privados que exploram atividades com evidente finalidade lucrativa.
A divergência está instaurada, inclusive perante as duas Turmas do STF, que discordam quanto à interpretação e à aplicação dos temas de repercussão geral que deveriam pacificar a questão.
[1] A Emenda Constitucional nº 132, de 2023 acrescentou menção expressa à empresa pública prestadora de serviço postal, ao lado das autarquias e fundações públicas, o que já havia sido decidido pelo STF no RE 601.392, Tema 235 da Repercussão Geral.
*Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal, aluno do PMPD
**Assessora de Ministro do Supremo Tribunal Federal, aluna do PMPD
Discussão