Liara Thomasi de Almeida [*]

 

O contexto de violência em que se encontra inserida a sociedade brasileira impõe diversos desafios ao poder público, especialmente na gestão da segurança pública para a repressão e prevenção criminal. Se por um lado o texto constitucional garantiu no seu rol de direitos fundamentais e sociais o direito à segurança dos cidadãos, por outro, assegurou direitos e deveres individuais a serem observados, entre eles a inviolabilidade do domicílio.

Diante da ampla gama de situações fáticas com que se deparam os agentes de segurança pública no exercício de suas funções, não raras vezes as diligências para a repressão de delitos envolvem exatamente a invasão domiciliar, em condição de urgência. Tal circunstância, contudo, não passou despercebida pelo Constituinte originário, que expressamente autorizou o afastamento da proteção constitucional ao domicílio em casos de flagrante delito ou desastre, para a prestação de socorro, ou, durante o dia, por ordem judicial[2].

A interpretação da norma firmada inicialmente pelo Poder Judiciário era no sentido de que a legalidade do ingresso policial em domicílio alheio seria extraída do resultado da diligência, ou seja, caso efetivamente fosse constatada a prática de crime no local. Com o passar do tempo, as Cortes Superiores passaram a exigir requisitos mais rígidos para o afastamento da referida garantia fundamental.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, em repercussão geral, redigiu o Tema n. 280, pelo qual se exigiu que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial fosse amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que no local ocorra situação de flagrante delito, sob pena de responsabilização do agente ou autoridade e de nulidade dos atos praticados. Como pontuado pela Corte, “[a] entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida” [3].

Ao julgar o Habeas Corpus nº 598.051/SP[4], o Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, assentou diretrizes e parâmetros para que fosse reconhecida a existência de fundadas razões que justifiquem o ingresso de forças policiais na residência dos cidadãos, sendo apontado pela doutrina como “a mais importante decisão já proferida sobre o tema, pois tratou tanto do consentimento dado para entrada dos policiais como também da busca em situação de flagrância”[5].

Segundo o acórdão do mencionado julgamento, se ao juiz só é dado autorizar a medida invasiva mediante decisão devidamente fundamentada que atenda aos requisitos legitimadores da busca e apreensão, foge à razoabilidade permitir que outros agentes públicos, no caso os servidores da segurança pública, tenham total discricionariedade para entrar de modo forçado em residências, a partir de uma avaliação subjetiva e intuitiva.

O contexto fático anterior deve servir, então, como suporte para justificar a suspeita de que ocorre uma situação flagrancial que seja apta a autorizar a violação de domicílio, ou seja, devem ser evidenciadas fundadas razões que amparem o ingresso na casa e uma eventual prisão em flagrante. A justificativa, entretanto, não pode ser extraída de mera desconfiança policial.

O voto do relator salienta, ainda, que a ausência de definição de critérios para a validação do consentimento do morador pelos Tribunais Superiores, diante do vácuo legal a respeito da matéria, resulta na continuidade de violação a direitos fundamentais constitucionalmente previstos, notadamente pela constatação do viés racial e social das abordagens policiais nas grandes cidades brasileiras.

É proposto pelo Tribunal da Cidadania que se exija das força de segurança pública o registro detalhado da operação, com a assinatura do morador em autorização disponibilizada antes da entrada na residência, indicando-se o nome de testemunhas quanto ao livre assentimento e à busca, em auto circunstanciado, conforme já dispõe a legislação para o procedimento do cumprimento de mandado judicial. Ademais, seria de suma importância que a diligência fosse registrada em áudio e vídeo, como já implementado em programas das Polícias Militares do Estado de Santa Catarina e de São Paulo.

Desde então os tribunais brasileiros enfrentam rotineiramente o tema ora discutido nos casos concretos que lhes são trazidos para julgamento. Segundo dados apresentados pelo portal Consultor Jurídico, no ano de 2023, por exemplo, o STJ anulou provas decorrentes do ingresso policial ilícito em domicílio no julgamento de 959 (novecentos e cinquenta e nove) processos, entre habeas corpus e recursos ordinários[6].

O reconhecimento, pelo Poder Judiciário, da ilegalidade das provas resultantes da ação empregada pelas forças de segurança pública em casos de violação de domicílio evidencia o descompasso da atuação policial em relação aos direitos e garantias constitucionalmente assegurados, não somente pela perspectiva do réu/investigado, que teve a residência indevidamente devassada, mas também sob a ótica da defesa social, que se vê tolhida da possibilidade de apuração do crime.

É imprescindível, assim, que a administração pública esteja atenta ao posicionamento dos Tribunais sobre o tema com vista ao aprimoramento de suas políticas de segurança pública relacionadas à investigação criminal, que servem também como instrumentos de efetivação do direito fundamental social à segurança. O início desse acompanhamento – ainda tímido – do Estado pode ser observado pela edição da Portaria do Ministro do MJSP nº 648/2024[7], na qual se estabelecem diretrizes sobre o uso de câmeras corporais pelos órgãos de segurança pública, prevendo expressamente a utilização dos equipamentos de imagem durante as buscas domiciliares, bem como pelo PL nº 1626/2024[8], em trâmite no Legislativo Federal, que propõe alterações do diploma processual para que o consentimento do morador quanto ao ingresso em domicílio seja comprovado por registro em áudio, vídeo ou outro meio idôneo.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. [Constituição (1998)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 fev. 2025.

______. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraodinário nº 603.616/RO. Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão geral. 2. Inviolabilidade de domicílio – art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. Possibilidade. [...]. Relator: Min. Gilmar Mendes, 05 de novembro de 2015. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search. Acesso em: 22 fev. 2025.

_____. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Habeas Corpus nº 598.051/SP. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. [...]. Relator: Min. Rogerio Schietti Cruz, 02 de março de 2021. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/. Acesso em: 22 fev. 2025.

______. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 1626, de 07 de maio de 2024. Altera o art. 302 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). Brasília: Câmara dos Deputados, 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2418101&filename=PL%201626/2024. Acesso em: 10 fev. 2025.

______. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Portaria MJSP nº 648/2024. Estabelece diretrizes sobre o uso de câmeras corporais pelos órgãos de segurança pública. Diário Oficial da União, Seção 1 - Extra B, Brasília, 28 de maio de 2024.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 20ª Ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023.

VITAL, Danilo. STJ anulou provas por invasão ilegal de domicílio 959 vezes em 2023. Consultor Jurídico. São Paulo, 04 jan. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-04/stj-anulou-provas-por-invasao-ilegal-de-domicilio-959-vezes-em-2023/. Acesso em: 25 fev. 2025.


[2] BRASIL. [Constituição (1998)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 fev. 2025.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraodinário nº 603.616/RO. Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão geral. 2. Inviolabilidade de domicílio – art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. Possibilidade. [...]. Relator: Min. Gilmar Mendes, 05 de novembro de 2015. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search. Acesso em: 22 fev. 2025.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Habeas Corpus nº 598.051/SP. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. [...]. Relator: Min. Rogerio Schietti Cruz, 02 de março de 2021. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/. Acesso em: 22 fev. 2025.

[5] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 20ª Ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023. p. 243.

[6] VITAL, Danilo. STJ anulou provas por invasão ilegal de domicílio 959 vezes em 2023. Consultor Jurídico. São Paulo, 04 jan. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-04/stj-anulou-provas-por-invasao-ilegal-de-domicilio-959-vezes-em-2023/. Acesso em: 25 fev. 2025.

[7] BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Portaria MJSP nº 648/2024. Estabelece diretrizes sobre o uso de câmeras corporais pelos órgãos de segurança pública. Diário Oficial da União, Seção 1 - Extra B, Brasília, 28 de maio de 2024.

[8] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 1626, de 07 de maio de 2024. Altera o art. 302 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). Brasília: Câmara dos Deputados, 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2418101&filename=PL%201626/2024. Acesso em: 10 fev. 2025.

[*] Liara Thomasi de Almeida é mestranda no curso de Mestrado Profissional do Programa de Pós-Graduação em Direito, Regulação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília.