A aplicação do princípio da insignificância aos crimes de furto
Uma necessidade frente à nossa realidade carcerária
Simone Soares de Oliveira [*]
O princípio da insignificância teve sua origem na doutrina alemã, tendo como um de seus precursores Claus Roxin[1], e se trata de um instrumento de interpretação do Direito Penal que permite a exclusão da tipicidade material de uma conduta, quando ela se mostra de ínfima lesividade ao bem jurídico tutelado, ou seja, quando a conduta não é capaz de gerar uma lesão significativa ao bem protegido pela norma penal, de modo a tornar desproporcional uma resposta estatal.
Sua finalidade, então, é restringir a aplicação da norma penal nos casos em que a conduta praticada cause lesão ínfima ou ainda, não ocasione dano relevante ao bem jurídico tutelado. No entanto, a falta de critérios objetivos e uniformizados à sua incidência no ordenamento jurídico brasileiro gera insegurança e seletividade em sua aplicação aos delitos de furto.
Isso porque, por se tratar de uma construção doutrinária e jurisprudencial ainda em evolução, com a adoção de critérios vagos e indeterminados pelo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do HC 84.412/SP (julgado em 19/11/2004, Rel. Ministro Celso de Mello), quais sejam: a) mínima ofensividade da conduta; b) inexpressividade da lesão jurídica; c) ausência de periculosidade social da ação e d) reduzido grau de reprovabilidade do agente; sua aplicabilidade fica à mercê da interpretação subjetiva dos magistrados.
Em virtude disso, “nasce a necessidade de critérios razoáveis para que seja aplicado o princípio da insignificância, considerando que conceitos indeterminados ou vagos podem implicar risco para a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões judiciais”[2].
Não obstante isso, a falta de clareza jurisprudencial sobre a matéria reflete a prática de uma política criminal seletiva, que penaliza com mais severidade indivíduos em situação de vulnerabilidade socioeconômica, enquanto crimes de maior impacto social, como os de colarinho branco, por exemplo, seguem subjugados a um sistema menos punitivo, e o resultado disso é o agravamento da superpopulação carcerária, conforme reconhecido pelo STF, no julgamento da ADPF 347, que declarou o sistema penitenciário brasileiro em um “estado de coisas inconstitucional”, ante o cenário de grave e massiva violação de direitos fundamentais dos presos, e das péssimas condições das unidades prisionais do País.
A título de ilustração, veja-se a análise do perfil do preso no Brasil, apresentado por Nelson Gomes de Sant’Ana e Silva[3]: “O perfil do preso no Brasil configura-se como mais uma face de nossa política criminal. De acordo com o “Mapa de Encarceramento” publicado pela Secretaria Nacional da Juventude em 2015, 54,8% dos presos no Brasil possuem entre 18 e 29 anos, 63,2% não possuem sequer o ensino fundamental completo, 60,8% são negros, 49,1% cometeram crimes contra o patrimônio e 25,3% praticaram tráfico de entorpecentes. Os dados “levantamento Nacional de Informações Penitenciárias” (Ministério da Justiça, 2014) vão ao encontro dos anteriormente apresentados com pequenas variações e acréscimos de novas informações. Segundo esta fonte, portanto, 94% são homens, 58% estão na faixa etária entre 18 e 29 anos, 68% não possuem o ensino fundamental completo, 67% são negros, 57% são solteiros, 38% cometeram crimes contra o patrimônio e 27% ligados ao tráfico de drogas”.
De outra banda, furtos de pequeno valor estão frequentemente associados a condições de vulnerabilidade social, como desemprego, falta de oportunidades e desigualdade econômica. Nesse contexto, a Teoria da Anomia, desenvolvida por Émile Durkheim[4] e posteriormente aprofundada por Robert Merton[5], sugere que indivíduos que não têm acesso legítimo aos meios necessários para alcançar objetivos socialmente valorizados podem recorrer a práticas ilícitas como o furto, para suprir suas necessidades. Dessa forma, a punição severa para crimes de pequena monta pode ser ineficaz, pois não ataca as causas estruturais da criminalidade.
Ademais, a Teoria do Etiquetamento (Labeling Theory), desenvolvida por Howard Becker[6] e amplamente discutida por Erving Goffman[7] e Edwin Lemert[8], alerta que a estigmatização de pequenos infratores pode levar a um ciclo de criminalização, pois uma condenação por furto, ainda que de baixo valor, pode resultar em dificuldades para reinserção no mercado de trabalho e maior propensão à reincidência. Assim, a criminologia reforça a necessidade de políticas penais menos repressivas e mais focadas na prevenção e reabilitação.
Outro ponto de destaque é a já consagrada aplicação do referido princípio em outros sistemas jurídicos. Em países como Alemanha e Itália, por exemplo, a proporcionalidade na aplicação da pena é um princípio basilar, garantindo que pequenos delitos não sejam tratados com severidade desproporcional.
Na Alemanha, a legislação penal[9] adota uma abordagem flexível na interpretação da insignificância, permitindo que furtos de valor irrisório sejam tratados de forma administrativa ou arquivados sem persecução penal, desde que não haja reincidência grave. O Código Penal alemão contém ainda dispositivos que possibilitam a dispensa da pena quando o crime não causar impacto social relevante.
Na Itália, o princípio da insignificância está alinhado com o conceito de “particular tenuidade do fato” (art. 131-bis do Código Penal italiano[10]), permitindo que o juiz exclua a punição quando o dano for insignificante e não houver periculosidade social do agente. Isso evita a criminalização de pequenos delitos e contribui para um sistema penal mais eficiente.
Nos Estados Unidos, a aplicação do referido princípio depende da legislação estadual e do critério discricionário dos juízes. Em alguns estados, a insignificância pode ser reconhecida implicitamente pela adoção de políticas como o “felony threshold” (limite de valor para qualificação de um furto como crime grave)[11]. Estados como a Califórnia e o Texas estabeleceram limites de valor para diferenciar crimes de furto como contravenções ou crimes, assegurando que delitos de baixo impacto não resultem em longas penas de prisão.
Nesse contexto, a aplicação do princípio da insignificância aos crimes de furto, deve ser analisado sob a ótica de uma relevante política pública na área criminal, pois o encarceramento excessivo de pequenos infratores não apenas sobrecarrega nosso sistema penitenciário, mas também desvia recursos que poderiam ser empregados na prevenção da criminalidade. Assim, políticas públicas que priorizem medidas alternativas à prisão, como programas de ressocialização, penas restritivas de direitos e justiça restaurativa, podem representar um avanço significativo na abordagem da criminalidade patrimonial de baixa ofensividade.
Em vista disso, a uniformização da aplicação do referido princípio, por meio do estabelecimento de critérios claros e já consolidados no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal como, como por exemplo, o limite do valor do bem subtraído de até 10% do salário mínimo, e a fixação da tese de que a reincidência não impede, por si só a atipicidade material da conduta, ante a aplicação do princípio da insignificância, é um caminho viável a ser adotado, pois conferiria maior previsibilidade e segurança jurídica aos magistrados diante do caso concreto, e impediria que casos de furtos insignificantes sobrecarregassem o Poder Judiciário.
[1] ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. T. I. Fundamentos. La estrutura de la teoria del delito. P. 65. Madrid: Civitas. 1997.
[2] LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da insignificância no direito penal: análise à luz da Lei 9.099/1995. São Paulo: RT, 1997. P. 49.
[3] JUNIOR. Nelson Gomes de Sant’Ana e Silva. Política Criminal, saberes criminológicos e justiça penal: que lugar para a psicologia? Tese (Pós-graduação em psicologia). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2017. Disponível em: https://repositório.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/23744/1/NelsonGomesDesant%27%27%27%27%anaESilvaJunior_TESE.pdf. Acesso em 17 dez. 2024.
[4] DURKHEIM, Émile. O Suicídio: Estudo de Sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
[5] MERTON, Robert K. Social Struture and Anomie. American Sociological Review, 1983.
[6][6] BECKER, Howard, Outsiders: Studies in the sociology of Deviance. New York: Free Press, 1963.
[7] GOFFMAN. Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de janeiro: Zahar, 1988.
[8] LEMERT, Edwin. Social Pathology: Systematic Approaches to Study of Sociopathic Behavior. New York: McGraw-Hill, 1951.
[9] Código Penal Alemão (Strafgesetzbuch – StGB).
[10] Código Penal Italiano (Codice Penale Italiano.
[11] Supreme Court Decisions on Petty Theft, United States Jurisprudence.
[*] Simone Soares de Oliveira é mestranda no PMPD, UnB.
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